sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA

 
 
ISAQUIEL CORY

O ÚLTIMO FEITICEIRO

 Quem for a Catete, via Luanda, há-de encontrar, nos arredores de Mazozo, bem junto à dita estrada nova, em contraposição à outra, velha, inteiramente abandonada ao capim e aos passos infatigáveis dos camponeses locais, um embondeiro outrora majestoso, caído, derrotado pelas forças humanas da destruição. Foi a partir daí, dessa paragem que o povo chama do “Embondeiro Caído”, que fui vencendo o longo percurso ravinado até à sanzala que viu os meus pais nascerem.

Ao longo do caminho seco e pedregoso, inadvertidamente, fui espantando os animaiszinhos que se banhavam de sol.

Com as costas húmidas e encurvadas de cansaço e os olhos semicerrados parei, finalmente, diante de Mazozo. As primeiras casas, de pau a pique, estavam espalhadas, separadas umas das outras por largas extensos de terreno coberto de capim. Galinhas e respetivas crias andarilhavam de um lado para o outro, à cata de alimentos. As únicas criaturas humanas visíveis eram algumas crianças de tronco nu, descalças, que se moviam com extrema lentidão.

Se em Luanda já notara uma certa lentidão no jeito como a vida se desenrolava, comparativamente a Londres, agora em Mazozo esse “não ter pressa” de nada, essa maneira rotineira e lenta de viver, dava-me a impressão de estar diante de um écran gigante com as imagens a passarem em câmara lenta. Interroguei-me se um écran desses, colocado em Mazozo, causaria o mesmo efeito que numa cidade. Captaria, os telespectadores locais o tempo e o ritmo diferente das imagens? Se as suas vidas já eram lentas não lhes ficaria melhor as imagens em câmara lenta?

Por breves momentos as crianças olharam-me com muita curiosidade mas depois retornaram às suas lentas brincadeiras. Chamei uma delas, que se aproximou devagar.

- Tudo bem? Onde é que mora o velho Chico Maria?

- O feiticeiro? – A criança, dos seus nove anos, falava num tom próprio dos naturais de Catete e denotava no seu português um forte sotaque kimbundo.

- Sim – respondi.

Olhou-me com muita atenção da cabeça aos pés e apontou, relutantemente, para uma casa isolada das outras, ao lado de um embondeiro velho.

Chegara, enfim, ao meu destino. Algures aqui fora enterrado o cordão umbilical do meu pai e da minha mãe. Ainda não sabia como proceder mas estava pronto para a vingança. Jamais ficaria satisfeito enquanto o sangue dos meus pais não fosse derramado sobre a cabeça do assassino.

Desabotoei a camisa, por esta altura completamente ensopada de suor, e fui caminhando muito lentamente para o sítio que me fora indicado. Nenhum adulto na rua. A essa hora estavam todos nas lavras, teriam ficado apenas os doentes e outros incapazes já de caminhar e de trabalhar a terra. As casas eram de aspecto modesto, algumas quase a caírem de velhas. A pobreza e também o conformismo da população estavam patentes em toda a sanzala. Não se notava qualquer indício de alguma tentativa de melhorarem as condições materiais em que viviam. Longas décadas de vivência a poucos quilómetros da grande cidade e entretanto a ambição dos conterrâneos dos meus pais limitava-se a conseguir o suficiente para comer. Foi então que compreendi o fenómeno que era a emigração dos mazozenses para a capital: era a única saída para singrarem na vida. Os que permaneciam na terra natal talvez fossem os mais conformados, os de mentalidade mais conservadora, impregnada dos valores ancestrais.

A casa do feiticeiro tinha as paredes inclinadas para dentro, mal aguentando o peso do tecto de capim. As janelas eram pequenos buracos assimétricos e a porta estava coberta por uma velha chapa de tamborão de combustível. Um cão todo ossos assustou-se com a minha presença e refugiou-se, caminhando aos círculos, para os lados de um anexo que me pareceu ser a cozinha, denunciando assim a localização do seu dono.

O tio feiticeiro, sentado na kibaka (banco feito de tronco de madeira) , de olhos avermelhados, com um casaco cheio de furos a cobri-lo inteiramente, ao jeito de um cobertor, apesar do forte calor que fazia, tremia de frio.

Sentiu o barulho dos meus passos e levantou a cabeça. O seu olhar incidiu sobre mim como as luzes de um carro numa noite escura, cegando-me momentaneamente. Ligeiramente atordoado aproximei-me mais e com as mãos agarradas à cintura lancei-lhe, do alto, um olhar de desprezo e ódio. Ele desfez-se do sujo e roto casaco e abriu a boca, sorrindo de modo triunfante, ao mesmo tempo que exibia a sua boca desdentada. Não consegui conter-me.

- Tu, assassino dos meus pais, jamais descansarei enquanto não vir o teu sangue a jorrar como água de uma torneira avariada! – Gritei, metendo nas palavras toda a minha raiva, toda a minha frustração. O velho continuava a sorrir. Impulsionei-me rapidamente para a frente, desferi-lhe um pontapé na boca do estômago e preparava-me para o esmagar no solo quando reparei que mesmo assim ele continuava a sorrir.

- Um momento, meu filho, um momento. Escuta-me – suplicou, em voz baixa, acusando, de qualquer modo, o impacto do pontapé recebido. – Eu sei que me queres matar e não vou fazer nada para evitar isso. Sabias que desde há muitos anos não tenho desejado outra coisa senão deixar de respirar e juntar-me aos mortos? Achas que é de bom grado que retiro a vida às pessoas, algumas das quais até me saio muito queridas? Meu filho, tu não sabes nada. Podes matar-me, se assim quiseres.

- Não tentes enganar-me. Diz-me, o que é que aproveitaste com a morte dos meus pais, seu miserável?

- Meu filho, eu tenho uma história. Já tentei contá-la a muita gente, mas nunca alguém prestou-me atenção. Muita coisa está a passar-se aqui na nossa terra de Mazozo e ninguém está a ver. Há uma corrente de vida que nos liga aos antepassados mas que agora está a quebrar-se. Todos estão a ir-se embora para Luanda e estão a esquecer-se das maneiras do nosso viver, do viver que nos foi ensinado por os nossos país, e pelos pais dos nossos pais. Tenho ligação com todos os nossos chefes antigos, com todos os nossos grandes mortos. Foram eles que ordenaram e me deram o poder de matar os teus pais, e não só. Sem esse poder eu não seria nada.

Essas palavras encheram-me o peito e a cabeça. A minha ânsia de vingança não se abrandou mas senti uma vontade irresistível de o ouvir, de o interpelar.

- E em relação aos meus país o que foi que esses antepassados disseram? – Perguntei, mostrando a minha curiosidade sem o desejar.

- Os teus pais e outras pessoas que na sua juventude partiram daqui e instalarem-se em Luanda são traidores. Renunciaram e traíram a sua origem. Bastou viver em Luanda para logo a seguir acharem-nos atrasados. Vinham para aqui e sentiam pena de nós. Esqueciam-se que o nosso viver é mesmo assim e que satisfazemo-nos com o pouco que temos. Os teus pais, porque conseguiram ganhar muito dinheiro, queriam mudar a terra dos nossos antepassados. Queriam trazer para aqui máquinas, tratores, motobombas. Criam matar-nos. Eu não tenho dinheiro, nem quero ter, basta-me o poder sobre a vida e a morte das pessoas.

- Digas o que disseres serás sempre um assassino, nada justifica a morte dos meus pais – gritei, pois era já incapaz de falar sem ser aos gritos. – Agora eu tenho o poder sobre a tua vida e vais morrer nas minhas mãos!

- Há, há, há! – Riu o maldito feiticeiro, despejando o seu bafo repugnante sobre o meu rosto – criança, isso é o que és! Tu só matas-me se eu quiser. Vou dar-te uma amostra do meu poder. Veja!

Não sei concretamente o que ele fez. Só sei que vi o meu pai e a minha mãe a virem a pé, carregando uma enxada e um kubutu (trouxa) nas costas, no caminho que rasgava o capim seco em direcção às lavras. Corri precipitadamente, chamando-os aos berros:

- Pai! Mãe!

Eles viram-me e pararam. Apressei-me a abraçá-los mas em vez de agarrar a massa dos seus corpos, abracei apenas o vento. Eles também abriram os seus braços generosos, tentando corresponder ao meu gesto, todavia eles também não me sentiam. Em vão insistimos, até que por fim ficámos a olharmo-nos uns aos outros, tristes, como se estivéssemos separados pela janela envidraçada de uma cela. Sim, de facto estávamos separados. Eles estavam mortos e eu estava vivo. Ou seria o contrário? Ou eles é que estariam vivos? Não interessava saber já, era uma questão de somenos importância. As lágrimas misturaram-se com o suor no meu rosto e verifiquei que os meus pais, lá do outro lado, do lado do não sei o que, também choravam. Prisioneiros de um poder que desconhecíamos, estávamos incapazes de comunicarmo-nos e isso era uma tortura. Estávamos condenados a olharmo-nos e a suscitarmos em nós a saudade dos tempos em que de facto estávamos juntos, em que podíamos tocar-nos, apalpar-nos, beijar-nos. Sem conseguir aguentar mais o peso de tanta saudade dei as costas aos meus pais e vi o meu tio, o meu maldito tio, a olhar para mim com os seus olhos avermelhados e agora rigorosamente inexpressivos. Girei rapidamente sobre mim mesmo e já não vi sinais da presença dos meus pais.

.- Viste, meu filho! Foi uma pequena amostra do meu poder. E como já não consigo suportar a tua presença, vou levar-te a Luanda. Conforma-te com a morte dos teus pais, deixa as coisas tal como estão. Venha.

Eu parecia um drogado. Tudo acontecia á minha volta mas eu estava alheado de tudo. Vim-me arrastado para o fundo do quintal e o feiticeiro enfiou-me numa velha canoa. No estado em que me encontrava não me perguntei sequer o que estaria a fazer aí uma canoa, tão longe do mar ou de um rio. O velho também subiu na canoa, segurou em dois remos e foi remando. Não tardou e ganhámos altura. Afinal a canoa era uma espécie de avião. Era através dela que ele ía às localidades distantes para cumprir o seu destino. O seu destino de feiticeiro, de suposto guardião da ordem preconizada pelos ancestrais. As nuvens estavam lá em baixo, o ar escasseava e involuntariamente eu respirava fundo. Passados alguns minutos divisei, ao longe, os altos edifícios da cidade. A canoa foi voando cada vez mais baixo e passávamos mesmo à beira das janelas de alguns escritórios, com um ou outro funcionário a olhar para nós com olhares perfeitamente normais, o que me deixou espantado: a visão de uma canoa voadora, de tão incomum, seria motivo suficiente para despertar curiosidade geral em qualquer parte do mundo. Só então dei-me conta da possibilidade de estarmos invisíveis.

A canoa pousou suavemente no quintal da minha casa e o que se seguiu já não me vem à memória. Sei apenas que despertei no meu quarto, na minha cama, vestido e calçado.

Dei um último safanão ao sono e fui a correr para a sala. A Marisa estava a ver um filme e assustou-se com a minha súbita presença.

- Oh, mano, que susto! Ontem esperei-te todo o dia e quase toda a noite. Como foi o encontro com o Chico Maria?

Tinha de descontrair-me, de mostrar normalidade: tinha o dever de não transformar também a vida da minha irmã num pesadelo, mais do que já o era, pondo-a ao corrente das coisas que eu próprio não compreendia inteiramente o sentido.

- Resolvi o problema, mana. O Chico Maria já não vai meter-se na nossa vida. Olhemos para a frente e organizemo-nos para gerir o pouco que ainda temos. Não há outra solução.

Sentei-me, fatigado, no cadeirão. Apesar de todas as evidências em contrário, queria pensar que tudo que acabara de acontecer não passara de um sonho, de um pesadelo. Apesar de todo o meu esforço eu tinha certeza que a imagem do meu tio haveria de visitar-me sempre e que de agora em diante eu não saberia mais o que é a vida e o que é a morte.

De outra coisa. Com uma veemência inquestionável, e incomodativa, eu ganhei a certeza: o tio Chico Maria pertencia a uma raça de feiticeiros em extinção, ele era, só podia ser, o último representante de uma casta de feiticeiros que bebiam do mais puro sopro da madrugada, alimentavam-se da emanações telúricas e conheciam o lugar exacto onde principiam as coisas.

In O Último Feiticeiro, Editor Chá de Caxinde, 2003

 

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