sábado, 18 de janeiro de 2014

MEMÓRIAS DA ILHA-Crónicas


 
 
AMORES

 Os subordinados há muito que o aguardavam, impacientes, às vezes até barulhentos. Sempre atrasado, talvez pensasse que quem não chega atrasado não é reconhecido.

Coisas da infância, quem sabe, talvez alguma rejeição pela qual todos pagavam.

A porta abriu-se e ele entrou, erecto e sorridente, como sempre. O silêncio desceu natural, enquanto todos se levantaram.

Bem, quase todos.

O Nandinho, como não ultrapassava o metro e quarenta, (precisos 140 centímetros, o bilhete de identidade estava lá para o comprovar),  permanecia sentado. De pé ou sentado ninguém o percebia, portanto...

O chefe, um general aposentado precocemente, com gesto magnânimo de mão, comandou as tropas, (as minhas tropas, como ele gostava de referir em reuniões restritas) para se sentarem.

- Estou com um ligeiro atraso...

Logo o Nandinho se levantou e, empertigado, falou:

- Não chegou atrasado, senhor Presidente Director Geral...

Faço aqui uma curta pausa pedagógica para dizer que era assim que o general precocemente reformado gostava de ser tratado. Presidente Director Geral. Por extenso e bem articulado, com todas as inflexões que o nome do cargo e a patente requeriam. Nada de PDG, como alguns livres-pensadores da Empresa, certamente que nunca teriam passado por um quartel,  ousaram fazer uma única vez. Isso de alta hierarquia ser tratada por PDG, PCA, DG, SG, não era para ele. Nos gabinetes militares nunca fora chamado por Gen, Gnrl ou qualquer outro mimo menos castrense.

Voltemos ao Nandinho que, esticado por hábito, a tentar alcançar inconscientemente pelo menos os 148 centímetros (a sola e os tacões do sapatos especiais elevavam-no aos 145), dizia:

- Não chegou atrasado, senhor Presidente Director Geral, nós é que chegámos adiantado.

A plateia, olhou pasmada para aquele gigante do lambe-botismo, aquele Zeus dos engraxates administrativos que se alcandorara ao posto de instrutor processual.  Para si talhado há pouco tempo, sob a sua mais atenta e providencial sugestão.

Com tanto despudor evidente, conseguia ser secretamente reverenciado por um ou outro dos colegas, com aquele inveja que se deve aos destemidos ou aos mais ousados que nós. Um desses admiradores, no caso admiradora, era a Teresa, uns dez centímetros mais alta, e que suspirava sempre que ele entrasse no departamento onde era contabilista. Como é sabido, é por aí que começam as instruções processuais, portanto não eram poucas as vezes que o Nandinho, a pretexto de verificar uma qualquer factura ou processo, colocava por lá o nariz, sempre olhando a Teresa de soslaio.

A Teresa, é uma versão amarela, aquele amarelo de mulata que nunca vai à praia, feminina e diminuta do King Kong. Mas tinha um coração de ouro e curioso. Quando o Nandinho se chegava com aquelas intimidades supostamente administrativas, fixava com interesse para as suas mãos extensas e suspirava, sonhadora. Seria verdade o que se afirma sobre os homens com mãos grandes? Em seguida olhava para o nariz dele e hesitava.

Mãos... não serão narizes?

Fosse o que fosse, o resultado seria o mesmo, até porque o proboscis do Nandinho era de igual notabilidade.

- É verdade, senhor Presidente Di-re-ctor Geral (teve o cuidado de sublinhar a palavra director, não fosse entender-se direitor e deitar tudo a perder junto ao Nandinho). Nós é que nos adiantámos.

E sem espaço para enleios, reafirmou a intervenção do Nandinho, só com mais veemência e a olhar di-re-cta-men-te para os seus olhos:

- Não chegou atrasado, senhor Presidente Director Geral, nós é que chegamos adiantado.

Todos viram o ruborizar agitado do Nandinho que, apanhado desprevenido por aquela declaração pública de amor, manteve-se de pé a olhar para a Teresa, envolto em só ele sabia o quê.

Quanto tempo teria passado?

Nunca o soube, mas foi ao quarto tossir rouco do senhor Presidente Director Geral, que os dois se sentaram, envergonhados mas com o coração em louca cavalgada pelas planícies escancaradas da emoção.

Em breve, de papel passado e com o senhor Presidente Di-re-ctor Geral a servir de padrinho, a Teresa iria desvendar aquela dúvida sobre as manápulas dos homens. Ou seria dos narizes?...

 

In Memórias da Ilha

 

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