OS MALDIZENTES
Recordo-me de, na minha infância, o meu pai receber o Reader’s Digest,
que eu lia com muito deleite pelas estórias e informação que continha.
Havia uma secção que logo procurava, por me fascinar com a descrição de
personagens e seus feitos em prol de qualquer causa que concorria para a
felicidade ou alegria do próximo.
Evidentemente que a personalidade
em descrição aparecia sempre pela positiva, conta tida os sentimentos
carinhosos que gerava. Creio que a coluna intitulava-se “O carácter mais
inesquecível” ou algo similar. Não sei se a revista ainda existe e
continua a publicar tal secção, todavia a evocação advém do facto de
constatar que a maledicência e a intriga é ainda hoje característica
comum, sobretudo nos locais de trabalho, onde é utilizada como forma
abjecta de pretensa ascensão carreirista por uns, ou, por outros, como
laxativo libertador da bílis mental, tornando pessoas normais e sãs em
vasos sanitários duma diarreia psíquica própria.
O maldizente
profissional é aquele que, indelevelmente marcado por qualquer
traumatismo recalcado, e se digo indelével é porque sei que ele
pessoalmente não acredita na psicanálise, incapaz portanto de se ver
sofrendo de um mal-estar psíquico, nunca encontra no próximo valia ou
qualidade reconhecidas, a não ser por motivos escusos ou de bajulação.
Torna-se assim uma espécie de surucucu iluminada que na perene sapiência
que a autodivinisação lhe impõe, para tudo tem teoricamente solução,
sem nunca ser parte dela. Age sempre pelas costas numa rigidez de
caracter que tem todas as características caninas, menos a atinente
lealdade.
Uma vez gratificada a sua mesquinhice, mas nunca se
livrando da incómoda frustração, aparece como um vaso exteriormente
untado de mel, todavia pleno de fel, querendo ajudar sua próxima vítima,
numa comédia perniciosa de pretensa boa vontade, impingindo a ideia de
que só graças a ele se consegue unir os cacos estraçalhados por sua
acção purgativa e merecida.
Isto leva-nos um pouco à questão da
moralidade, onde este tipo de comportamento se revela como uma invasão a
fronteiras específicas criadas pela sociedade que, para sua própria
protecção, determina regras sociais de convivência e de ética, que tanto
hoje lutamos para ver aplicadas e absorvidas.
O autor do livro “O
que é a Ética”, o professor Luís Montenegro Valls, ensina-nos que para
um comportamento socialmente correcto o cidadão tem que não só ter
confiança no Estado como “agir de tal modo que seja bom não só para mim
mas também para os outros”. Quanto à confiança no Estado, “ela está
directamente relacionada ao nível de organização da sociedade: os
direitos e deveres do cidadão para com o Estado (e vice-versa) precisam
ser respeitados. Quando há falência do Estado as pessoas deixam de agir
moralmente. Cada pessoa passa a lutar pela própria sobrevivência e
abre-se o caminho para a lei do salve-se quem puder”.
Felizmente
para todos nós, o Estado tem-se movido na direcção inversa dessa
inadiplência passada com passos determinados, tem-se constituído
paulatinamente no garante da nascente democracia, tem visado e vindo a
consolidar a organização da sociedade, sobretudo com o fim da guerra que
a tudo isto levou. Mais do que nunca, a lei do salve-se quem puder vai
sendo banida do nosso meio e a sociedade começa a reganhar formas e
conteúdos onde os direitos e os deveres do cidadão são respeitados, e a
questão do civismo, da moral e da ética passam a ser preocupação
premente da maioria.
Só assim, nos iremos transformando de
maldizentes em bendizentes, em benefício de todos, sobretudo na nossa
paz interna e do nosso amor-próprio.
10/07/05
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