sábado, 4 de agosto de 2012

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



JOÃO TALA

Uma das promissoras vozes na literatura angolana, nasceu em Malanje, a 19 de Dezembro de 1959. Foi, sobretudo, na poesia que este escritor e médico mostrou a sua veia literária, sendo uma das maiores revelações da década de 90, com vários prémios literários nacionais. Estes contos, retirados do livro Os dias e os tumultos, mostram-nos uma nova faceta do escritor, com a mesma acutilância e pujança que a sua poesia revelou.

GEORGINA

Ora, eu simplesmente não gostava de igrejas. Assombravam-me. Meu pai também desistira delas a pensar – como repetia embriagado – a defunta minha mãe que se ajoelhara perante todos os santos, enquanto o cancro da pele reduzia-a, maltratante, matando-a por dentro e por fora.
Eu fora até à Igreja dos Espíritos em busca de Georgina, a quem chamava “meu anjo”, porque disseram-me, logo após o meu regresso, que andava lá num reencontro consigo mesma. Uma busca convicta, à medida que a perdera há anos.
Cultiváramos amizades com a despreocupação permitida da infância, quando ainda ignorávamos os dias que começavam com a cor dos tumultos.
Seremos, brincávamos, toda a infância até quando a mulata Georgina despontava, a florescer: os mamilos já a fazerem pontas ameaçando trespassar a blusa encarnada, a bunda a peneirar os movimentos do corpo, na sua subida de idade. Eu que ainda não ejaculava sequer, sentia qualquer coisa ardente e desesperante, mas algo insensato, que só explicaria quando mais crescido desmistificasse o amor e a lascívia, naturalmente.
Nesse tempo, ela devia ter treze e quanto a mim a idade que mais convinha. Corava quando por vezes eu deslizava os olhos sobre sua meia estatura, para depois os deter na cintura. Isso deprimia-a com vergonha de que tinha crescido.
Avante. Tínhamos realmente crescido, numa altura em que os acontecimentos exaltariam a hecatombe. A guerra arrastava um país, a esmagar a época. De tal modo, alguns anos mais tarde, vi-me numa caserna militar. Partilharia escombros, valas comuns e incomuns como são as trincheiras. Palpitavam-me os fusis e o estrondo do medo. É este o meu infortúnio.
No dia em parti, Georgina juntara-se aos lamentos amargos de minha avó, enxugando- lhe as lágrimas.
A guerra durou o que podia, sem vitória para ninguém nem derrota para esquecer.
Eu voltava, ao encontro de Georgina. Com ela sonhei a tranquilidade de um lar, como então o país a recobrar-se das tenebrosidades.
Marchei para aquele submundo, o bairro Mártir, da noite a crescer preenchendo vidas mercantis, rumo à Igreja dos Espíritos (o novo espaço de Georgina). Procurei-a e, cansado, deixei-me numa das praças da noite agravando a minha sede pela cerveja. Não sei por quantas doses comecei a tropeçar, exacerbando o discurso. Ébrio, dei-me a falar de amor.
É sabido, quando falamos de amor, os homens se unem à nossa volta para ouvirem as nossas experiências. Não desse amor ao próximo que as religiões instruem não. Mas do amor erótico, adulto, que nos faz esquecer o pão e as necessidades. Engano deles porque
eu falava de Georgina. Começaram a exigir-me que usasse de termos mais adultos, impróprios
– «a seguir, o que é que se passou... anda fala lá... ou não fizeste nada, diabos?».
Nada fizera. Esses tipos não entendem o amor.
A igreja surgiu ao amanhecer. Infinita catedral! O ar lá dentro é como uma sombra, bastante visível entre centenas de candeeiros a querosene iluminando o engima, invertendo a alvura das paredes. Reconheci um certo clima melancólico como nos tempos em que ia com minha mãe às missas.
Os candeeiros emanavam um forte odor a querosene e fuligem que estimularam a minha asma e me incitaram a tossir. Como que excitado por minha tosse, um homem gordo e desproporcional, trajando um uniforme azul escuro com feitio de batina e touca vermelha descaindo na face, surgiu correndo, esbracejando um violento «põe-te lá fora já!». Empurrou-me brutalmente à porta numa atitude pouco cristã. Fê-lo porque sou um estranho à sua congregação. E também para proteger a irmã Georgina de um mundano.
Mundano ou mundiano não são os termos que me atormentam. Atormentam-me sim as procuras inconclusivas, as febres da pós-guerra. Assimilara que o mundo são as voltas que damos. O gordo não me confunde. Ele não é o Cristo. Na sua igreja Cristo é uma figura, uma escultura de ébano!
Nunca vi igual. Por isso, tinha-o metodicamente raciocinado. Ora, o olhar de Cristo sempre me reteve como um olhar mágico. Ei-lo naquela escultura parecendo perscrutar estas coisas desta vida imprestável dum mundo em vão. E um ébano fá-lo parecer negro e estranho. Bem uma escultura trabalhada com mãos difíceis. Das linhas incisas aos mais profundos sulcos; os erros dos contornos, a tortuosidade e saliências, demonstram a imperfeição do artista, que certamente esculpira com toda a arte mas, também, com a infalível fraqueza humana. Pobre pecador de mãos trémulas. Qualquer pessoa sofreria quando, de um pedaço de tronco, se afigurasse pouco a pouco o distinto rosto do Santo, e a cada golpe de escopro fosse como se ao corpo do Homem quebrasse os músculos, os tendões e os ossos. E o ressentisse entre pregos, no calvário, na cruz da
nossa alforria.
Estava a contar, foi logo assim que o gordo devolveu-me à porta. Voltei à casa onde minha avó opunha-se vigorosamente contra a minha busca. Segundo ela, jamais achara amor tão descabido. Eu não lhe conferia sentidos. Aliás, que pode uma velha entender do amor nos dias e nos reboliços de hoje? Mas desaprovou-me do mesmo modo:
– Porque desejas tu, meu neto, filha de ngueta?
Depois aumentou:
– Nem sabes que a vida levas para a dar na filha de um ngueta. Você pensa é fácil para quem não está habituada a esta porcaria... – Dizia-me com o dedo apontado a esteira.
– É chata a avó Chica. Teimava em julgar-me o amor pela cor do corpo. A descendência de Georgina punha “tartarugas” na sua velha mente. Nada de ideias porque o mundo em nada melhorara, pelo contrário nenhuma, palavras demolidoras carregadas de uma metáfora experiente que a nós, pequenos revolucionários (ou que o tínhamos sido), lembrava-nos ainda a réptil classificação de “serpentes” na língua. Uma língua de intolerância. Deveria – pensava – ter antes morrido para não ver certas coisas. Agora tinha de as ver todas. (“não é justo, avó nos veja a todas como “corvos” em tuas noites.
Há sol a renascer na alma; a pomba já voa.”)
Avó Chica é quantas vezes destes gestos indizíveis; persistia na sua ignorância de julgar o amor conforme as raças. Para ela eu devia ceder aos caprichos daquela lá, a Anita Martins, que ia e vinha tentando me agradar. Não nego que é uma mulher bem dotada. Não nego. Anita tem partes, andou nos livros, estudou dactilografia. Avó gostava dela e muito.
Pé ante pé ia à espreita de Georgina mas, o sacerdote impedia que a visse. Da última vez reservava-se-me uma surpresa: o sacerdote chorava desamparadamente!
Insólito – nunca ninguém o fez desse modo. Parecia um touro aos soluços, chorando com todo o seu tamanho. As gotas do que desalento faziam-me dó. Uma sujeira. Sou de
opinião que os homens devem inclinar suas lágrimas para dentro, assim não há o dissabor de vermos os dejectos de nossas tristes emoções caindo-nos dos olhos, sujando-nos a virilidade.
Chorava, afinal, porque também amava Georgina! Não era um amor educativo, religioso, não. Amava como qualquer homem ama uma mulher. Jamais se pronunciara  disse – para não quebrar o seu sigilo.
Não concordo. Um sentimento escondido é pior do que cadeia. É burrice aprisionar-se a si próprio. Não comungo esse tipo de sigilo.
Para o meu augúrio contou-me que passara ali um sargento e entusiasmara Georgina. E o militar prometera um tempo inteiro só para ela. Prometia a nuvem, o elance e o lar.
Mas que tempo tem para o dar uma tipa um sargento? Parece trecho de romance.
Já o vi o pior no cinema...
Disse-me ainda o gordo que quando o sargento se foi embora, ela ficou embriagada.
Embriagada?! Estremeci diante da verdade: a “embriaguez” feminina é pior do
que própria lua-de-mel.
O facto levou a que o gordo lhe ditasse oito dias a pão e água. E que se confessasse ante a estátua da Sala-Maior, que simbolizava um qualquer santo africano. Ela cumpriu mas, depois foi-se embora livre de pecado e de monges rabugentos.
Discordei do castigo dado à Georgina mas, não estaria agradecido do seu comportamento, julgo, leviano. Também eu sofria com o facto.
Agora não é mais a Georgina quem busco. Busco apenas um modo frio, exigente, de a retractar no esquecimento. Tê-la presente mas esquecida; torná-la memória emudecida, um mínimo de morta e fantasma. Para já, dizer, o amor também faz vítimas!
Habituava-me ao bairro Mártir. Suas praças movimentadas distraíam-me. Ia lá para me embriagar, escutar música e dançar. Estava ébrio quando, certa vez, notei olhinhos sobre mim. Eu ria a e mulher que os possuía os deitava o meu rosto. Ela faria a noite e o dia caber em mim... abri aqui uma lacuna:
– Ouve lá, quantos anos tens?
A idade torna-se mais importante do que o nome por causa da prostituição infantil.
O fenómeno catorzinha nos envergonhava a todos; nos sentíamos mais pobres, ultrajados no íntimo, porque são as crianças, que continuam a nossa infância.
– Quantos?– repeti, curioso.
– Dezoito, moço – respondeu balançando uma perna levando com a mexida o rabo todo.
– Ainda bem. Já cá pensava se não terias dez.
Ela sorriu envergonhada com os olhos no chão. Uma fingida mas’é. A culpa não é dela. A falta de tudo transtornava-nos a todos. Ela simplesmente desenrascava os dias.
Na mesma noite conheci a minha primeira prostituta – essa pequena criatura de tronco adelgaçado e acinturado para fazer sobressair enormes matakus. Tinha um volume de seios firmes, mamudos, prestáveis, atirando-os para frente com a marcha felina. O encanto me subjugava. Bebeu cerveja comigo, fumou os meus cigarros e com a música de Kinshasa, forte e palpitante, iniciamos a viagem, a aventura, o jogo.
– Como te chamas, afinal tens de ter um nome...
– Os homens me chamam Tita – respondeu.
– Ah, os homens. O nome é uma graça, próprio para ti. Aceito o menu.
Perseguindo pela insatisfação, então já uma vaga lembrança de Georgina, continuava à procura de Tita.
De regresso à casa, avó Xica nunca me vira – dizia – tão triste. Achou-me isolado de modo que convocou astutamente Anita Martins de quem suportava os sermões bem intencionados, tributários de uma religião do bom ser e do bem-estar. Não mais a minha. Tal religião. Eu ia e vinha com Anita me esperando. A pequena Tita me enfeitiçara.
Concluindo, Georgina acabava na dupla Anita & Tita. Eram duas híbridas como duas gémeas na minha confusão mental. Porém, no espaço ruidoso de Tita não pode existir uma Anita Martins. Tita apenas gatafunha o seu nome enquanto Anita lê romance. Tita não lê romances; ela é um romance.
Continuava a ir ao bairro Mártir á procura de Tita até que certa vez tive a primeira das duas grandes desilusões: Tita fora com outro homem, continuava ao seu munhungo.
Quando avistei o Gordo que persistia em busca de Georgina, disse-me: “não se amam putas”. E disse-o com muita naturalidade.
A última desilusão foi a surpresa de ter encontrado, subitamente, uma Georgina longínqua, possuída de maus espíritos, delirantes. Estava ela com o corpo amassado, dorido, pálido, com olheiras profundas. Antes, o sargento que a desencaminhara, partira e não mais voltou.
Nunca se vira tanta água nos olhos duma mulher até ao que chamei de massacre
solitário de Georgina. Loucura!
Chamamos o doutor Gamba Manuelle que estava de regresso com uma bagagem extraordinária, findo a hecatombe. Ele curava as insónias e as chagas da guerra um
pouco por toda a parte. Preferia palestras sobres as feridas da vida, as escaras do espírito.
Pedimos que tratasse veladamente Georgina.
O doutor alegou ser um infortúnio, uma psicopatia remota. Deu-lhe comprimido para secar as lágrimas. – Oh!, de mal de amor ninguém faz diagnóstico – desajustou-se o Gordo.
Todos nós lhe gritamos:
– Ché, cala a boca seu sacerdote. Este não e doutor dos musseques, ouviu?
– Doutor, é verdade que o amor também faz vítima?
Já não me ouvia, no seu carrinho já, os faróis perdiam-se embora na noite.
E m Georgina permanecia a loucura. Teimava na nudez. Tita (que no entanto regressara) cobria-a, cuidava do pudor. Os mais sensatos dos homens fechavam os olhos para que não a vissem nua e fétida. O gordo orava, incitava-nos que orássemos com ele. Eu duvidava das rezas mas, orava para pedir a Deus que recolhesse profusa alma de
Georgina.
Nesse cacimbo (ó Georgina!) casei-me com Anita Martins enquanto amantizava a bela Tita.

In Os Dias e os Tumultos, União dos Escritores Angolanos, 2004

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