terça-feira, 1 de novembro de 2011

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



MANUEL RUI

Manuel Rui nasceu em 1941 no Huambo. Estudou direito em Portugal, onde exerceu advocacia. Escritor, professor de literatura, jurista, cronista de imprensa, colaborador de rádio e de cinema, é uma dos mais valorizados escritores angolanos, com vasta obra publicada, tanto em prosa quanto em poesia e traduzida em várias línguas quer nacionais, quer estrangeiras. É o autor da letra do Hin Nacional de Angola.



ALICE NO PAÍS DELA!

Alice tinha regressado do país das maravilhas.

Regressara num avião boeing. Chegara à sua terra “senhores passageiros”.

E contava à família tudo de maravilhoso que ela vivera no país das maravilhas. E Alice era, agora, a pessoa mais importante da família. Todos a rodeavam para lhe ouvir as maravilhosas estórias que ela vivera no país das maravilhas.

Os mais velhos, então esses, pasmavam de olhar na Alice e seu pai e a sua mãe era só orgulho mimado a desbaratar-se de rosto babado. Que filha exemplar!

Que deixou o país das maravilhas nesse voltar o coração para ao pé dos seus. Pobres. Quase sem rumo. Sempre na espera de qualquer coisa nova. E Alice era uma novidade.

E, por isso, quando se começou a fazer da terra de Alice um país e se arranjou um rei, insígnias e bandeira, logo alguém pensou que aquele país estava dotado para ser das maravilhas. Porque era muito rico, falavam. E as pessoas tinham muita esperança.

Daí que o rei convidasse logo Alice para ocupar a pasta da economia, o que Alice aceitou e tomou posse.

Mas Alice não se deu com essa pasta e, em menos de três meses, quase arruinou o ministério.

O rei, que era muito discreto, decidiu afastar Alice por conveniência de serviço, quer dizer, Alice convinha a outro serviço, quer dizer, Alice convinha a outro serviço diferente, era por ele solicitada.

E o rei falou:

“Alice. Você foi fadada para fazer carreira. É esse o seu destino e temos pouca gente com experiência do país das maravilhas. Por isso vou colocá-la no ministério da agricultura.”

“Rei. Desculpa tratar-te por tu. Mas tu sabes, pá, que eu só aceitei porque desejo fazer carreira, pá. Estou ou não estou nomenclaturizada?”

“Claro que estás! As carreiras são para nomenclaturizados.

Só. Amanhã tomas posse. Vem de fato e gravata”

E Alice foi e tomou posse. De fato e gravata.

Nesse ano a agricultura foi um desastre tal que só faltou importar fome.

Mas o povo via posters e cartazes! Alice! Alice! A do país das maravilhas! E como ninguém sabia bem o que eram maravilhas, toda a gente tinha esperança em Alice porque havia estado no país das maravilhas.

E o rei conhecia-a e também havia conhecido o país das maravilhas.

E Alice foi para o ministério das finanças.

Só um mês. O rei resolveu mandá-la para o ministério das pescas. “Acho bem – falou Alice para o rei – se a minha vida é fazer carreira, é preciso, é necessário prosseguir a carreira! Obrigado, rei”

Um ano nas pescas. Só carapau e no matanço.

E o rei retirou Alice das pescas. Alice vinha farta de maravilhas, por isso deliciava-se com asneiras e detestava maravilhas. Isso o povo não sabia.

E o rei, já cansado de ver Alice fracassar e quase desmentir

as maravilhas do país das maravilhas, foi colocando Alice em todos os mistérios que faltava ela ocupar, um por um e ela sempre a falhar.

Andou pelo ministério da qualidade de vida e as pessoas começaram a ficar parece pankadas, a andar nuas ou com as partes todas à mostra, de propósito e em protesto, recusando a comida dos grandes supermercados, amburgers-macdonaldes e tudo, também de propósito, em greve de fastio e só comendo das lixeiras até que picharam numa parede, a letras garrafais, “andamos com os tomates à mostra porque estamos fodidos! não estamos malucos!”. E depois da qualidade de vida o pior ainda foi o ministério da saúde porque só num mês o país esgotou a reserva de caixões que estava guardado para o dia da família. “Coitada da Alice – dizia o povo – a Alice do país das maravilhas! E se ela nos kibiona assim – dizia uma quitata já cota e a rir – deve ser por amor, por gostar tanto de nós! A Alice do país das maravilhas! Estou do lado dela até ás últimas consequências.”

E bis! Gritaram no cabaret e o disc–jockey botou lambada.

Viva a Alice!

“E agora para onde é que hei-de mandar a Alice?”– cogitava o rei. Um homem que não gostava de fazer mal a ninguém.

Como era um país de gente muito mal educada – na rua os homens mijavam em repuxo e as mulheres abriam as pernas a olhar para o mar – finalmente o rei lembrou-se a de colocar Alice no único ministério onde ela ainda não estivera. O da educação.

O certo é que Alice aguentou por lá quase nove anos. Coitada!

O cabelo a branquear. Fechou escolas. Os alunos ficaram contentes e foram para as praias. Mandou comprar tijolos para substituir carteiras que não havia e os alunos preferiram as latas. Teve os votos dos vendedores do mercado onde livros e cadernos se passaram a matar nas pessoas. Fechou uma faculdade por falta de espaço e, envolvida em aplausos delirantes das massas, num comício para saudar o início das férias de uma escola que estava fechada havia nove meses, disse em voz alta – punho erguido “a escola é do povo!”

Alice foi condecorada. Que linda medalha! E tirou uma fotografia com a medalha. Que linda fotografia!

Aí. O rei mandou-a chamar “Alice que estória é essa? Qual é a escola que é do povo? Alice, não tenho mais nenhum ministério para te dar. Já partiste todos. Nem pareces a Alice do país das maravilhas.

Tens de sair da nomenclatura!”

“Ai isso é que não saio! Vim para aqui a teu pedido e para fazer carreira. De contrário ficava no país das maravilhas. Um rei tem que ter palavra. Senão não é rei nem nada, porra!”

“Alice, por favor, não digas asneiras” – falou o rei sempre calmo. Alice de mini-saia.

Oito dias depois, por conveniência de serviço e usando da faculdade que lhe era conferida, o rei criou o Ministério da Alice.


In Da palma da mão, Edições Cotovia, Lda. 1998

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