segunda-feira, 5 de julho de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


A PALAVRA

Há muito que me preocupo com a Palavra, não no sentido etimológico, mas sim a partir do livro primeiro, bíblico.
Ao tentar encontrar uma explicação para mim aceitável, começo por visualizar o Criador, sozinho e a “viver” no abstracto, nem nas trevas nem nas luzes. Qualquer uma delas inexistia, aliás nem o sentido de abstracto tinha despacho oficial.
Tudo teve existência formal a partir da palavra, para quem acredita no Livro. Só pode.
Vamos que, de repente e sem mais, o Ente dá conta da sua solidão infinda e acha merecer companhia. Reinventa-se próprio e cria a Palavra, para dar sentido aos actos pessoais, já que sem ela, nunca poderia ter ordenado faça-se isto ou aquilo, separem-se os céus da terra e haja dia, haja noite. A criação da vida foi pois um acto linguístico. E aqui é onde mais sofro, porque me questiono em que língua terá o Ente falado, primeiramente consigo próprio (quando qualquer rugido serviria) e, seguidamente, com Adão.
E Adão para com Eva e seus filhos, que língua terá usado? A mesma, vulgarizando deste modo a língua divina que os precedeu?
O que terá levado Adão, perante o facto de ter de nomear a bicharada nos ares, nos mares e na terra, a chamar porco ao porco, e não pig, cochon, ngulu? Com que intenção? Simples alcunhas atiradas aos ventos, ou produto de uma observação e reflexão propositadas, todavia sem sentido já que, imagino, os conceitos, a existirem, seriam novidade?
Se formos a fazer contas, porque tudo foi elaborado em seis dias úteis de trabalho, e partindo do pressuposto de que haveria mais espécies animais e vegetais do que hoje, logo chegaremos à conclusão que a matemática está errada.
Seriam necessários muito mais dias para Adão inventar a palavra adequada e colá-la ao respectivo endereço, sem perigo de repetição ou amnésia, sem esquecer ainda de que, naquela altura, na floresta os bichos falavam. Até que ponto poderiam ter interferido nos seus próprios nomes? Porque é que a cobra aceitou ser denominada de cobra e não de Afonso ou Marinela, por exemplo?
Imaginemos um diálogo destes, entre o Ente e o primeiro Homem.
“Tata ngana (não sei como se endereçaria Adão, que tipo de relacionamento ou familiaridade haveria entre os dois), está ali um outro parecido comigo, mais baixinho e cheio de pelos pretos, a dizer que também se chama Adão, só porque Te ouviu dares-me o nome”.
Sem prever que iria criar uma confusão de linhagem milhões de anos mais tarde, o Ente pretendeu ser de ajuda.
“Não te aborreças, só não erra quem não trabalha! Chama-lhe chimpanzé” (traduzido do suposto idioma original).
Satisfeito, Adão continuou a tarefa de apodar os seres, com o agora quase-parente ao lado, em amena cavaqueira. Primo é primo!
Por certo Adão não encontrou dificuldades maiores a nomear a bicharada, qualquer palavrão servia, não obstante o vocabulário reduzido. Só então se inventavam as palavras, à medida das necessidades. Não havia ainda aqueles termos difíceis, como direitor, que todos chamam ao superior que, mais adequadamente deveria ser director (que se lixe o acordo hortográfico), significa dizer, que já per si significa dizer, internet, jet ski, kimbanda, nissan patrol, s’ingravidei-se, já puzeu a mesa? , sim já puzi e, graças a Deus, que não está a chuvar lá fora.
Mas para não fugir ao assunto, o que verdadeiramente me pica, é saber que língua se falava no Início?
Ao acreditarmos no Livro, o idioma único até o acontecimento de Babel, teria que ser o Hebreu. Lógico! Evidente! Incontroverso!
Não só por serem os diálogos primordiais trocados com as várias entidades bíblicas nesta língua, como os seus faladores, supostamente o povo eleito do Ser, também o utilizarem. Todos os troncos da Humanidade, segundo o Livro, daí advieram e um tronco comum só poderá ter a mesma seiva, a não ser que afinal, como nos é atribuída a paternidade da Humanidade, tenha sido Swaili, o que se fala ali no vale do Olduvai., de onde saíram os parentes originais.
Todavia, quando apareceu a oposição, com a expulsão dos anjos rebeldes do paraíso, é lícito de se supor que a língua do regime único, milhões de anos depois rebaptizado (que se lixe o acordo hortográfico) de Estalinismo, tenha encontrado contestação e prevalecido nos moldes originais, por esse facto. Por razões óbvias, não se pode imaginar a oposição, coitada já então no inferno, a falar o mesmo idioma!
Pode parecer-vos gozação de minha parte, todavia não é, são questões existenciais que me coloco amiúde.
Sugiro que a rádio Ecclésia gaste um dos seus sábados matinais, a debater esta candente questão com os seus participantes a que já nos habituou e, meus amigos, honni soit qui mal y pense!

Dezembro de 2004

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