segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO



ANTÓNIO JACINTO

Nativo de Luanda, onde nasceu a 28 de Setembro de 1924, é sobretudo conhecido pela sua poesia. Com um livro “Poemas (Lisboa 1961) e vasta obra difundida em vários países, me antologias, revistas, jornais, etc. Nacionalista de primeira hora, condenado pela repressão colonial a 14 anos de prisão, tendo cumprindo 10 deles no campo de concentração do Tarrafal, em cabo Verde. Como escreveu Manuel Ferreira, não haverá movimento ou surto literário, iniciativa de carácter político de vulto em Angola, desde que lá de longe a ideia de libertação começou por germinar, onde este homem não tivesse intervido. Escritor com pouca prosa, o conto aqui inserido é um das suas esparsas tentativas neste ramo da literatura. Publicado, originalmente em “Contistas Angolanos” (1960) pela Casa dos Estudantes do Império, foi escrito em 1946.

VOVÔ BARTOLOMEU

Vovô Bartolomeu desde manhãzinha que olhava o pardacento céu, enrugando a já engelhada testa.
- Vovô, que é que você esta a ver no céu?
- Estou vendo uma coisa que você vai ver só, logo no meio-dia, e que a estas horas já chegou lá no sô Luca.
- Que é que tem lá no sô Luca?
- Diga nos homens para trabalhar com pressas, senão você vai ver só: ninguém que pára com chuva.
E vovô Bartolomeu entrou arrastadamente na cubata, de onde saía um fumo bom de fogueira quente. Ainda o ouvi cantar:

Mano Santo yá kifumbe
Eh! Eh! Eh! Eh!

- Eh! Pessoal! Vamos despachar o serviço, vovô Bartolomeu disse que vai vir chuva.
E todo o pessoal começou a trabalhar com força, para acabar de recolher o milho, quase para o meio-dia.
A colheita não tinha sido pá, e este ano havia de pagar todas as contas e ainda sobrava dinheiro para dar o alembamento (dote) da filha no velho Gonga.
Este ano sô Antonho tinha emprestado a espingarda a troco de carne e os kiombos (javalis) e as pacaças (espécie de búfalo) não estragaram o meu milho, não.
Ali estava o pessoal a meter na cubata o milho todo, por causa da chuva. Homens fortes de verdade! Aquele milho bonito que devia dar pra pagar as contas e o alembamento. Ainda devia chegar prò imposto e escapar de ir no contrato (trabalho forçado nas fazendas de café). Se o imposto subiu? Não sei, mas parece que este ano o imposto está mais caro! Depois tinha de comprar fiado um sobretudo na loja do sô Magalanji porque no cacimbo, eh!, o frio era o fim do mundo!
O pessoal cantava:

Trr… Trrr… Trrr…
Tuá… tuá…
Vai ou não vai?
Vaaiii…

E o Kassul, quando carregava a quinda (esta), respondia:

Rimbuim, pim, pim, pim…

Para puxar as forças.
No muxito (pedaço de mato cerrado), os pássaros da chuva, contentes, estavam a fazer:

Pílulas, pílulas, pílulas…

E na cubata vovô Bartolomeu contava na miudagem uma história que ele contava sempre todos os dias quando estava para vir chuva:
“Quando a tia Mariquinhas foi em Luanda como lavadeira, veio para a sanzala com a mania de pessoa fina e a dizer que já não sabia kimbundo (idioma nativo).
Uma vez começou de chover e a tia Anica disse:
- Eué! Nvula uiza! (Está a vir chuva)
- Ai, dona! Não fala assim, na língua de pessoa se diz assim: está chovar!”
Primeiramente ouvi as gargalhadas de vovô Bartolomeu e depois é que a miudagem começou a rir.
Começámos a ouvir barulho no céu. Nzâmbi (Deus) estava com raiva. E umas pingas de água cairam.
Vovô Bartolomeu chegou à porta da cubata e, a rir, mostrando as gengivas sem dentes, perguntou:
- Já está chovar?
O pessoal tirou a camisa e começou a trabalhar com força. Bom pessoal. Tudo família da casa e vizinho. Ali não tinha monangamba (criança).
As mulheres e a miudagem começaram a correr para enxotar os pintos e as galinhas. A criação parece que corria bem, mas os garotos – aía! – corriam melhor.
A minha cadela Quer-Vir entrou na cubata de vovô e começou a sacudir a água que tinha no corpo. Vovô refilou:
- Tunda (sai), Quer-Vir! Não faça chiqueiro aqui. Tundaco!
Quer –Vir estava contente e parece que queria arreliar o vovô. Veio dar voltas no terreiro, rebolou-se no chão e quando ficou toda molhada e toda cheia de terra, foi sacudir tudo em cima do vovô, que ficou raivoso:
- Estupor do cão! Tunda, ché, tunda! Que te racho!
Ficou escuro cedo. O pessoal estava satisfeito, mesmo nunca na minha vida ficara tão contente. Se vendia o milho ia amigar com a filha do velho Gonga. Eu não sei o que tinha na muxima (coração), mas há um ano que só pensava na filha do velho Gonga. Ela também dizia estar sempre a pensar em mim. Quando foi no óbito do velho Kalunga estive quase mesmo para levar ela no capim. É tão bom pensar estas coisas!
Nisto, do céu caíu um raio e caíu mesmo em cima da cubata que tinha o milho e tudo começou a queimar. Eu, o pessoal, as mulheres, a garotada e o vovô Bartolomeu viemos para fora, sem medo da chuva que chovia, para apagar o fogo. Qual nada! O milho queimou mesmo todo.
As mulheres começaram a gritar e a se lamentar e eu fiquei triste, muito triste…
Estava a olhar as cinzas e nos olhos veio água, muita água de chorar, que não era chuva, não.
Vovô Bartolomeu ficou muito grande, rijo, muito grande, pôs-me a mão no ombro e disse:
- Sorte de preto!
Olhei o meu arimbo (pedaço de terra). Meus pés descalços pisaram bem aquele chão, aquela terra que cheirava a chuva e era toda minha. No meu nariz entrou a força toda que vinha da terra grande. A chuva corria como rio lá ao fundo naquela baixa. E os paus de café estavam lavados, estavam verdes, estavam bonitos, bonitos e novos, como a filha do velho Gonga! Não, eu não ia ficar assim parado a pensar na sorte de preto que vovô falou. Não. Aquela terra tinha força. Eu também.
Amanhã eu ia mesmo, com a minha força toda, limpar a lavra do café.

In “Vôvô Bartolomeu”, Edições 70, 1979

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