segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A PRECE DOS MAL AMADOS



CAPITULO NOVE

ESPELHOS DA ALMA

Os imortais só perdurarão
enquanto houver justiça.
(Kahlil Gibran)


Era meio-dia e meia duma tarde de calor escaldante, que penetrava incluso pelos abrigos mais profundos onde os lagartos e as cobras se abrigavam. Sob as árvores ou acobertados pelas nesgas de sombras projectadas pelas casas, os animais e as aves domésticas, língua de fora a arfar ar quente, moviam-se o menos possível, ensurdecidos pelo trinar estridente das cigarras nos troncos e ramos dos arbustos ao redor. Nas lavras, as mulheres abrigaram-se por uns instantes para alimentarem as crias e repousarem da dura labuta. Os montículos de galhos e troncos secos recolhidos, pontilhavam aqui e ali, prontos para serem levados para a aldeia, onde Nazamba, Nataniel e Tomás conversavam, resguardados da temperatura na frescura interior da casa. Sobre a mesa, dois copos com cerveja de milho e um outro contendo água, ao lado da jarra. Nazamba petiscava uma meia massaroca, o marido e o irmão não as tocaram, aguardavam a hora do almoço, que não tardaria.
- Vai sendo tempo de partirmos. – disse Nataniel. – Mais umas duas semanas e devo estar de regresso ao Hospital.
- Mas só quando a nossa mãe chegar. –retorquiu prontamente Nazamba.
- Talvez daqui a uns seis, sete dias. – informou Tomás
- Quem levou a mensagem, tem capacidade de preparar mentalmente a mãe? – perguntou Nazamba.
- Não somos assim tão rudes, minha irmã. Levou as devidas instruções e como aprontar a velha.
- Fico mais tranquila, assim dentro de duas semanas poderemos ir.
- Eu parto amanhã, não posso ficar mais tempo. – disse Tomás.
- E a nossa mãe? – perguntou, angustiada.
- Não te preocupes, se não for eu próprio a trazê-la, será alguém de minha plena confiança. Levem-na para Luanda, não se sabe o que será o amanhã.
- E o que vais fazer, Tomás? – pergunto Nataniel.
- Para te ser franco, não faço a mínima ideia. Como só sei manusear armas, talvez fique no exército, acho que só haverá um.
- Poderás estudar, fazer um curso que gostes. – insinuou Nazamba.
- Nunca é tarde, de facto. Logo verei, por agora é prematuro, nunca se sabe o que tudo isto vai dar. Acho que quando chegarem as eleições, temos tudo nas mãos para as ganhar.
- Como assim? – quis saber Nataniel.
- Estamos em posição de força, obrigámos os cubanos a sair e o regime a abrir, o comunismo caiu e não temos o desgaste de imagem que vocês têm.
- Queres dizer que vai ser assim tão simples, só vão ter que gerir a situação? – perguntou Nazamba.
- Quanto a mim, sim. Nós somos os libertadores e temos o apoio dos camponeses.
- Mas a maioria dos votos estão em Luanda, onde uma grande parte da população se refugiou. – retorquiu Nataniel.
- Mesmo assim. Vocês já estão no poder há muito tempo e a vida das populações em Luanda não está boa, segundo sei. Mesmo Luanda irá votar em nós, não precisamos de fazer campanha sequer, vocês é que têm que se explicar junto ao eleitorado, não nós.
- Achas que sim, não estás optimista de mais? Olha que a vossa imagem não é também assim tão boa, os crimes são muitos. – disse Nataniel.
- Crimes, que crimes? A guerra é que é um grande crime, tanto de um lado quanto do outro.
- Lá isso é verdade, se as mulheres mandassem não haveria guerra. – interpôs Nazamba.
- E quando chegares a Luanda, tens que ter muito cuidado para não falares deste nosso encontro. – recomendou Tomás.
- Mas porquê? Estão a assustar-me!
- Pactuar com o inimigo, eis o porquê, minha irmã. Confraternizar com o inimigo, tanto para mim quanto para o teu marido, não é seguro por agora. Podem mandar-nos fuzilar.
- Fuzilar? – perguntou Nazamba, verdadeiramente em pânico.
- Para o caso do teu irmão, certamente. Quanto a mim seria no máximo a travessia do deserto ou a volta para as frentes.
- Então os teus homens... – pensou alto Nazamba, olhando para o irmão.
- Nada a temer, não sabem que Nataniel é militar, conhecem que é teu marido e nada mais. Esta é uma das razões porque desejo partir o mais cedo possível, ainda pode aparecer por aí alguém que não deva. Amanhã de madrugada estou de abalada, despedimo-nos hoje à noite, nem vou falar ao avô, vocês explicam tudo.
- E se fossemos almoçar? Estou esfomeada. – sugeriu Nazamba, para mudar de assunto.- Acho uma óptima ideia. – respondeu Tomás enquanto enchia os copos novamente.
Nazamba dirigiu-se à porta e gritou para os moleques, pedindo-lhes que trouxessem a comida e mais bebida. De seguida regressou à mesa e sentou-se.
- Tomás...
- Sim, minha irmã, o quê é?
- E se a guerra recomeçar?
- O que queres dizer com isso?
- Não venhas mais a esta aldeia, deixa o nosso avô em tranquilidade.
- A paz com a família está feita. Fiquem descansados, levem a mãe para Luanda, aconteça o que acontecer.
- Assim faremos, tão cedo ela chegue logo partiremos.
- Estamos todos cansados da guerra... havemos de nos encontrar em breve... só que por enquanto tenho que ser cauteloso... – foi gaguejando, Tomás.
- É verdade, toda a vossa juventude foi entregue à morte, não há o direito. – disse Nazamba, sentindo a angústia do irmão.
- Não vamos recair nessa conversa, temos que ser optimistas. – respondeu Nataniel.
- Eu sou optimista, mas quem nos dirige, tanto a uns quanto aos outros, são pessoas egoístas e que só vêm os seus interesses. Uns ficam ricos com o petróleo, os outros com os diamantes. E tu Tomás, meu irmão, matarias o meu marido, assim como ele te mataria a ti se a ocasião se proporcionasse. Não é verdade?
- Para quê esta conversa agora, minha irmã?
- Mas é verdade ou não o que eu disse? – insistiu Nazamba.
Os cunhados entreolharam-se, mas nada disseram. Sabiam que assim era, caso o capricho da vida propiciasse os condimentos certos, esse teria que ser o destino, o cenário estabelecido pelas regras do jogo.
- Nazamba, este é o momento da nossa despedida, a partir de logo à noite não mais veremos o Tomás. Entendo a tua angústia, mas isso nada modificará, portanto vamos passar o resto do dia em harmonia. – pediu Nataniel.
- Vocês homens fingem que são muito fortes...
- Não é bem assim, minha irmã... vamos comer em paz, logo nos veremos novamente, a guerra acabou, vais ver.
Sob esta nota de despedida adiantada, o almoço decorreu melancólico e meio silencioso, cada um remetido ao seu âmago. O que iria acontecer ao país, tantas vezes acordos haviam sido assinados e mãos cerradas, seguido de efusivos abraços de promessas de irmandade e de respeito mútuo, para logo ao voltar da primeira esquina do desentendimento, propositado ou não, ruírem as expectativas, as esperanças e o fratricídio recomeçar em acrescida carnificina e destruição?
Eram quatro e meia da manhã quando Tomás reuniu os homens e partiram, silenciosos, embrenhando-se nos matos que tão bem conheciam, em passos cautelosos de futuro incerto. No seu coração, levava um peso muito maior do que trouxera.
A povoação despertou com os gritos das crianças a anunciar que os soldados tinham ido embora, não mais se via o fumo dos fogos matinais onde permaneceram.
- Que soldados? Que soldados estiveram aqui? Quem falar isso, vai amarrado no soba grande! – mandou Nehone instruir por toda a aldeia.
E cada qual calou a sua curiosidade, se o soba grande tal ordenara era porque sabia o que se passava, e o povo pensou que a guerra não acabara afinal. Tudo iria recomeçar, se não, porque tal mando, quando quem os visitara até era o seu neto Tomás? Que teriam discutido, que ele não lhes contara? Teria sido por isso que partira sem sequer despedir-se, como chegara, sem anunciar-se? A comoção foi tanta que Juba de Leão reuniu com os velhos, o conselho, pela manhã e pela tarde mandou o povo agrupar-se junto ao jango, tendo-lhes explicado que havia paz, porém não se tinha a certeza do que ia acontecer, ainda faltavam as eleições e, assim, ninguém queria arriscar, porque não se mexe no lodo quando se deseja apanhar o bagre. Daí a sua ordem e daí, também, a saída furtiva do neto com os seus, a tropa do governo poderia aparecer e logo haver confusão, sobrando para a aldeia porque ele não mandara avisar. Por isso, deviam calar até a situação estar mais clara. Ninguém estivera na aldeia, nem neto nem meio neto, ninguém, e quem não cumprisse com a ordem teria que se ver com ele e a sua ira. Depois de algumas perguntas, a população dispersou e todos se sentiram mais aliviados, fingir sobre a presença da tropa deste ou daquele, há muito que o faziam.
Ao cair da tarde, Nehone dirigiu-se à casa dos netos tendo enviado um dos moleques a anunciar a sua visita. Nataniel esperava-o na porta e saiu a seu encontro, sorrindo. No interior, Nazamba acendeu o petromax, em breve escureceria por completo, abriu o mosquiteiro sobre o leito, e cerrou as pequenas e toscas janelas de madeira laterais, a luz atraía muitos insectos.
- Boa noite, avô, seja bem-vindo – disse, afastando-se para que o velho entrasse primeiro.
- Obrigado, meu neto e boa noite para vocês. – respondeu, enquanto Nazamba a ele se dirigia para o saudar.
- Como vão as coisas, aqui?
Como vão as coisas por aqui? Que coisas?...
Logo deu conta que Nehone vinha para colher informações, pelo menos o início da conversa assim indicava. Trouxe-lhe uma cadeira para se sentar, junto à mesa, e acomodou-se na outra, de igual modo.
- Vão bem, só que a ida de Tomás causou muita preocupação. – respondeu.
- É verdade, pelo menos devia ter falado connosco primeiro, ele não vos avisou?
- Não, avô, não disse nada – respondeu rapidamente Nataniel, mentindo.
- Ficámos tão surpresos quanto todos. – confirmou Nazamba, em socorro do marido.
- Estranho, sair deste modo, porquê? – insistiu o velho, desconfiado.
- Talvez pelos motivos explicados pelo avô Juba de Leão...
- Não sei... não sei. Nãos vos falou mesmo nada?
- O que é que ele ia falar? Se partiu desta maneira é porque a achou melhor, menos confusão na aldeia, vai ver que foi isso. – respondeu Nataniel.
- O avô acha que há outro motivo? – perguntou Nazamba, para afastar as suspeitas.
- Não! – respondeu, lesto, Nehone. – Não, está tudo bem. Então nem se oferece um copo de água a um velho?
- Estávamos à espera que o avô acabasse a conversa para lhe perguntar o que quer beber. – disse Nazamba.
- Água, minha neta. Só um copo de água do moringue, que deve estar bem fresca.
- E está. Não quer comer nada?
- Vocês da cidade estão sempre a comer, não obrigado, mas se tiver um bocado de milho assado, aceito.
Nazamba dirigiu-se à porta e ordenou, a um dos moleques, que trouxessem milho assado e rápido.
- Amanhã vou vir com o mestre Tuluka para falarmos.
O casal assustou-se, afinal a conversa era aquela que eles pensavam esquecida, as linhagens e sabe-se lá mais o quê.
- Falar sobre quê, avô?- fingiu, Nataniel, talvez houvesse qualquer outra questão.
- Amanhã digo. Vocês devem ir embora daqui em breve e tem que estar tudo resolvido.
- Credo, está a assustar-me! Tudo resolvido, que problemas há? A nossa mãe?! – indagou Nazamba.
Como resposta Nehone sorriu e sorveu a água. O moleque entrou com as massarocas assadas e entregou-as a Nazamba, com as duas mãos. Saiu de imediato, deixando a porta semiaberta.
- Não te preocupes, dá-me o milho. Sobre a tua mãe, o Tomás não disse que ela iria voltar?
- Disse, e pediu que a levássemos connosco para Luanda. – respondeu Nataniel.
- Então pronto, vamos aguardar que ela chegue!
- Mas avô, que assunto é esse para amanhã que tem que meter o mestre Tuluka? – quis saber Nazamba, preocupada.
- Minha neta, você vai ter que aprender a esperar. A ter paciência e saber esperar, o rio não corre toda a água de uma só vez. O que de amanhã é, de amanhã e não de hoje. O sol não nasce todos os dias?
- Desculpe, é que não estou habituada a esta maneira de pensar e ver as coisas.
- Pois vai habituando e vai habituando rápido.
Meus Deus, ir-me habituando? A quê?...
- Porquê, avô? – indagou Nazamba, novamente assustada.
- Porque para apanhar o mel, tem que saber fazer fumo e conhecer as abelhas.
- Apanhar o mel, eu? – disse Nazamba, olhando para o marido a solicitar ajuda.
- Nazamba, os velhos sempre falam com muitas metáforas e tens que tentar entender o que o avô está a dizer-te. – respondeu Nataniel.
- Mas nem tu próprio deves estar a entender!...
Nataniel olhou para o chão e levantou-se para que a esposa não visse o seu embaraço. Claro que entendera. Nehone sorriu e achou melhor deixar a conversa por ali. Ergueu-se, pronto para sair.
- Mas o avô acabou de entrar! – logo protestou Nataniel, desejoso de saber um pouco mais, talvez o velho escorregasse.
- De facto, mas tenho que ir. Obrigado pela água e até amanhã, logo quando o galo madrugar.
- Assim tão cedo? – indagou Nehone, surpreso.
- É!... O pássaro que levanta cedo, é o que apanha a minhoca.
E para que não houvesse mais interposições, Nehone saiu, deixando Nataniel apreensivo, não viera para se meter ou ver metido nos assuntos da aldeia. Há tempos que estava afastado e mais do que metade da sua infância já a havia esquecido, perdera muitos dos costumes e das tradições, modificara ideias e maneiras de interpretar acontecimentos, não dera continuidade à vida rural, e essa ambivalência não lhe era confortável. Que lhe queriam os velhos? Fosse o que fosse, não abandonaria Luanda nem o Hospital, sobre estes factos assentaria a sua defesa.
Pode o pássaro levantar cedo à vontade, que não serei eu a apanhar a minhoca!
Metade da noite foi passada com Nataniel e Nazamba a tentarem descortinar o que desejavam de si com tanta premência e, quando lhes bateram à porta, mesmo antes do cantar do galo a fim de que não fossem vistos, pouco tinham dormido. Nataniel abriu a porta e franqueou-lhes a entrada, rosto desfigurado pelo cansaço. Depois dirigiu-se à cómoda e acendeu um candeeiro a petróleo.
- Bom dia avô, bom dia mestre, sentem por favor, tenho que acordar a Nazamba e lavarmos a cara.
- Façam isso e não demorem muito.
O mestre adivinho estendeu o luando no chão da sala e foi preparando os seus adereços. Do quarto de dormir, pela nesga da porta propositadamente entreaberta, o casal olhava, perplexo e receoso, nunca se tinham visto confrontados com cena parecida e temiam o que eles julgavam ser os feitiços e os feiticeiros. Agora, num turbilhão, viam-se envoltos em actos que não percebiam e as suas vidas a serem manobradas para rumos que não vislumbravam nem aceitavam.
- Mas o que eles querem, meu Deus? – ciciou Nazamba ao ouvido do marido.- Não sei. O melhor é despacharmo-nos para acabar com esta comédia o mais cedo possível.- Mas estou com medo.
- Não há-de ser nada, afinal somos netos, portanto não nos querem mal.
- Então para quê todas essas coisas. Isso não é só conversa, olha para aquele cesto que ele colocou na esteira, todo cheio de coisas estranhas.
- Aquilo é o cesto de adivinhação, vão querer mostrar-nos qualquer coisa, vais ver – murmurou Nataniel.
- Adivinhação, o que há aqui para adivinhar, não pedimos nada?! – respondeu Nazamba, tremendo, ao recordar-se do Cigano e da leitura da mão que lhe fizera vezes sem fim, sempre lendo-lhe a sorte que ele construía para seu benefício.
- Tem calma, vamo-nos preparar para que tudo acabe cedo. Logo ficaremos a saber o que pretendem.
Encerraram a porta com prudência e Nazamba acendeu o candeeiro a petróleo. Ambos lavaram-se a foram-se vestindo em silencio de vozes, as suas mentes estilhaçavam em pensamentos e conjecturas, até as suas sombras projectadas em danças graciosas nas paredes do exíguo quarto, lhes infundiam receio. Por fim saíram, Nazamba cumprimentou com um bom dia os dois, e sentaram-se, calados. Entretanto, Tuluka, sentado no luando, olhos fechados, cantarolava palavras ininteligíveis e bamboleava o corpo para a frente e para trás. Por fim abriu os olhos e indicou, com um gesto, a Nazamba para que sentasse no chão, um pouco à sua frente. O que ela fez, com relutância, e após ter sido empurrada com suavidade por Nehone, mais ajoelhada do que sentada. Procurou os olhos do marido, que propositadamente os baixara a fim de que os não buscasse, como fuga ou desconcentração.
- Não precisa ter medo. – disse Tuluka.
- Mas o que vai fazer, sou estranha a estas coisas! – respondeu, voz embargada.
- Vamos fazer uma cerimónia para vos revelar o que os antepassados falaram.
- Cerimónia, antepassados?... – inquiriu Nazamba, apreensiva.
- Mano Nehone, explica! – pediu mestre Tuluka.
Nehone endireitou o corpo e pigarreou. Bebeu da água e esfregou as mãos, como que limpando qualquer sujidade. Levantou-se, de modo a que pudesse ser visto pela sobrinha neta, e falou.
- A minha neta deve estar lembrada quando lhe expliquei a sua descendência, assim como a do teu marido, o nosso Nataniel, não estás?
Falha de palavras, emperradas na garganta por um medo estranho, meneou a cabeça em assentimento.
- Pois bem, tinha uma razão. Chegou a altura de se encontrar um substituto para Juba de Leão o nosso soba grande, para que não haja lutas e mortes quando ele falecer, o mestre Tuluka foi consultado. O que os antepassados falaram, nós queremos mostrar-te.
- O que os antepassados falaram? – perguntou Nataniel.
- Sim, porque o soba Juba de Leão quer-te a ti, Nataniel, como seu sucessor, por isso há muito que esperava a tua vinda. – respondeu Nehone
- A mim? Fora de questão, não tenho nem quero ter nada a ver com isso.
- Não é preciso, quem falou já falou. Pela linha do sangue os sucessores só poderiam ser Nazamba ou Tomás, mas Nazamba é a mais velha e a escolhida. – disse Tuluka.
Nazamba, sem um ruído, amoleceu o corpo e tombou para o lado, desmaiada. Nataniel deu um pulo da cadeira, sendo de imediato travado por Nehone.
- Deixa, ela está bem, senta-te. – ordenou-lhe com autoridade.
Tuluka recomeçou as cantilenas e ergueu-se, para dançar, em suave saracoteado, à volta de Nazamba, enquanto a borrifava com uma pequena vassoura de varas, de uma mistela que tinha numa tigela feita de uma cabaça.
Atónito, Nataniel contemplava a cerimónia, sem dar por ela, agarrado ao braço de Nehone, que o conduziu à cadeira e o tranquilizou com o olhar.
Mestre Tuluka sentou-se novamente, pernas cruzadas, agarrou no balaio de adivinhação que levantou por três vezes acima da cabeça, em cantos roucos, lançando, depois, o conteúdo no luando, à frente do corpo desmaiado de Nazamba. Olhou para Nehone e ambos sorriram de satisfação, o boneco elefante fêmea de madeira, jazia sobre o dente do leão. Recolheu os amuletos, levantou-se e executou a mesma dança à volta de Nazamba, borrifando-a novamente, em gestos que acompanhavam a cadência do passo. Sentou-se, agarrou no cesto, peneirou os amuletos três vezes e tornou a lançá-los no luando e, como antes, o elefante mulher sobrepôs-se ao dente de leão, facto que Nataniel notou, recuando a cadeira, de temor.
Estes velhos estão malucos, hipnotizaram-me!...
Tuluka, mais uma vez se ergueu, agarrou na tigela e na pequena vassoura que rodopiou por três vezes em cima do líquido, e procedeu à aspersão de Nazamba, com as mesmas palavras e sons só por ele entendidos. Pouco depois Nazamba começou a dar sinais de vida e foi-se levantando com suavidade, meneando a cabeça e batendo os pés no chão ao compasso das cantilenas do mestre adivinho. Nehone sorria com alegria indisfarçável, enquanto Nataniel, sem se aperceber, empurrara a cadeira cada vez mais para trás, até a encostar à cómoda, travando-a. Era a primeira vez que assistia a uma sessão de possessão. Os gestos de Nazamba foram aumentando de energia, e começou a rodopiar a cabeça. Tuluka aspergiu-a mais uma vez e, sempre saracoteando, foi sentar-se, deixando a mulher a gesticular e a rebolar o corpo quase em frenesi, os olhos esbugalhados, parecendo querer saltar-lhe das órbitas. Levantou o balaio e, com os mesmos rituais, lançou os amuletos uma terceira vez. Quando o elefante fêmea apareceu sobre o dente de leão, ouviu-se um grito-rugido rouco, nitidamente masculino, da boca de Nazamba, já caída por terra em sacudidelas e tremores violentos, proferindo palavras que nenhum dos presentes entendia. Tuluka, embora sentado, continuava com a aspersão e marcava no chão o compasso de um ritmo côncavo, com o pé direito.
- Falem! – Obtemperou por fim Nazamba, na voz de um homem e na língua nativa.
Nataniel, ao ouvir a mulher a falar um idioma que ela desconhecia e numa voz masculina, caiu para o lado, estonteado. Nehone olhou para trás, viu o neto no chão, sorriu e ignorou-o. Logo voltaria a si, não se magoara e já percebera o suficiente para ser de utilidade è esposa.
- Juba de Leão deseja indicar um sucessor que não é da linhagem. – falou Tuluka.
- Esse gesto trará muitos males sobre vossas cabeças e descendência...
- Sabemos, por isso precisávamos ter a certeza de quem deve seguir.
- É aquela que vocês sabem quem é, já falámos. – respondeu a voz, arreganhando a boca de Nazamba, num esgar de refutação.
- Mas ela é filha do branco... – Insistiu o mestre adivinho.
- Ela é filha, nossa descendente. – Replicou a emanação, com gestos autoritários.
- Isso vai trazer muita confusão, muitos não vão aceitar.
- Fale quem falar. – reafirmou - Vocês sabem que desde Zwela, filho de Luvemba o fundador desta linhagem, que puxou Luvumbu mais Mabunda que deram Juba de Leão mais Kolele, tem Balanta e Nazamba. Olhem pela descendência...
- Vamos cumprir.
- É melhor cumprirem, grandes desgraças vão acontecer se o não fizerem. Todos os filhos que nascerem da descendência, serão comidos. Agora vou-me embora.
Tuluka levantou-se prontamente e dirigiu-se a Nazamba, começando a tapear-lhe suavemente a cabeça, enquanto lhe endereçava palavras só por ele conhecidas. Os gestos desta foram-se tornando mais suaves, até que acabaram por completo os efeitos da posse. Sentou-se, quieta, buscando com o olhar o sentido. Viu formas distorcidas e cores múltiplas em caleidoscópio rolante. Do galho da árvore onde pirilampos brilhavam nos olhos da onça, desenroscou-se a cobra que desceu sibilante para o capim húmido da casa do pai. Então, notou o marido, anichado no chão, e estranhou, quando a seu lado havia a cadeira em que antes se sentara. Nehone ergue-a e conduziu-a, com cuidados, para a cadeira onde a deixou para repousar. Momentos longos após, voltou-se para o marido.
- O que aconteceu?
- Entraste em transe e uma voz falou através de ti. – respondeu-lhe este.
- Uma voz falou através de mim?
- Sim. – respondeu Tuluka. – Os antepassados escolheram-te para sucederes ao teu avô.
Nazamba permaneceu silenciosa pelo tempo que o pensamento voou pelas montanhas e mares até ao túmulo do pai. Viu-o rebolar-se em gargalhadas estrídulas, sentado na tipóia que o conduzira a Juba de Leão para o pedido de casamento com Balanta. Em reverberação sinuosa, deu por si na continuação da gargalhada paterna. Levantou-se e passeou à volta do pequeno espaço, quase tropeçando no balaio de adivinhação, pousando os olhos nos três homens presentes, sempre a gargalhar. Assustaram-se, seria que tinha enlouquecido?
- Os antepassados falaram? – riu. – Os antepassados falaram?
- Sim, falaram e confirmaram aquilo que já sabíamos. – reafirmou Nehone.
- Tudo aquilo que já sabiam? Desde quando é que sabiam tudo isso? – perguntou, sarcástica, e séria.
- Já há algum tempo, precisávamos era de confirmar junto de ti, na tua presença. Foi o que aconteceu.
- E o que aconteceu? – perguntou directamente ao marido?
- Só sei o que aconteceu, até ao ponto em que desmaiei. – respondeu, envergonhado.
- Desmaiaste? – perguntou Nazamba, com nova gargalhada. – E porque desmaiaste?
Nataniel não conseguiu olhar para a mulher, ainda não interiorizara o que acontecera e porque não se aguentara. Teria o seu subconsciente escolhido aquela evasão a fim de que não testemunhasse a possessão da esposa e pudesse, mais tarde ser questionado?
- Olha Nazamba, fui simples testemunha de parte do que aconteceu. A uma determinada altura entraste em transe e começaste a falar com uma voz de homem. Foi aí que perdi os sentidos . – desculpou-se.
Nazamba sentiu que feridas antigas estavam a ser laceradas e postas a sangrar. Seria que teria que atravessar o longo deserto dos sentimentos fossilizados, penetrar pelas cavernas mentais, em cujos tectos estalactites milenares de emoções revestidas de espessa crosta protectora, gotejam os desejos do ódio e da vingança, para, enfim, alcançar e percorrer a estrada da tranquilidade e da harmonia espiritual?
- Meu avô, só agora é que os antepassados resolveram falar? – Inquiriu, ríspida. - Porque não se revelaram quando correram com o meu pai e o meu irmão e deixaram a minha mãe quase louca? Porquê, seus velhos mentecaptos?!...
- Nazamba! – gritou-lhe o marido.
- Deixa, não faz mal, é o medo que está a falar nela. – cortou logo, Nehone.
- Medo? Medo de quê, destas mentiras e patifarias vossas?
- Não, minha neta. É o medo de aceitares o que está determinado pelos que nos deixaram. Finges não acreditar, mas sentes medo.
Nazamba calou-se e continuou a andar à volta da sala. Tuluka, por precaução, já retirara o cesto e recolhera o luando, que encostara à parede.
Querem é dar cabo de mim, isso sim!
- Medo? Pelo que eu sei os mortos não falam. Que estória é essa que me querem impingir?!... – Disse, já um pouco mais calma.
- Eu mesmo não acreditei quando vi o resultado da adivinhação. Todas as seis vezes, como agora, falaram de ti, não há coincidência, é a vontade dos antigos e não me perguntes porquê. – disse Tuluka.
Vontade dos antigos?... Patifes ... Vamos lá a ver o que querem.
- E então? O que significa tudo isso para mim? – perguntou.
- Significa que temos que te preparar para seres a rainha, a nossa soba grande. – concedeu Nehone.
Mais uma vez a gargalhada sonora de Nazamba reverberou pela sala. Marcelo, o pai,
cutucava-a, da varanda da casa comercial. Os outros brancos, os comerciantes, pareciam pálidas imagens reflectidas deles próprios, agrupados à volta de um troco seco e recurvado, corpos translúcidos que a miravam do fundo de olhos cavernosos. Nervosa, aumentou o passo e nem mais olhava para Nehone, Tuluka e o marido. Sua mente ameaçava explodir. Esperava tudo menos o que ouvira. Ela, filha escorraçada por ser parte dos que vieram pelo mar, agora era eleita rainha dessa mesma gente.
Estão doidos, só pode ser! E o meu marido, meu Deus, o que faz no meio de tudo isso? Rainha?...
- Rainha? Agora vou de filha da cobra a rainha? Vocês são patéticos, absurdos, será que não vêm o que dizem?- Assim pode parecer, mas não é. Sabemos o que dizemos e o que fazemos, minha neta.
- É verdade, Nazamba. Se fugires, muita desgraça cairá sobre a aldeia e mesmo sobre ti e tua descendência, teus filhos serão comidos. – afirmou Tuluka.
- Comidos? Mas que estória é essa?!... – Indagou, perplexa.
- Serão mortos, serão chamados, desaparecerão um a um, nada os salvará, os poderes são muito grandes, nem eu poderei fazer nada. – Contestou mestre Tuluka
- Parece não quereres acreditar no que se passou. O teu marido foi testemunha, lembras-te do que te aconteceu? – Insistiu Nehone.
Nazamba tentou recordar os acontecimentos, mas só chegava até ao momento em que mestre Tuluka anunciava que fora a escolhida para sucessora. Depois as trevas, nada mais. Não ingerira qualquer bebida ou comida, nem dejejuara e Nataniel afirmava que a tinha ouvido falar, em transe, com a voz de um homem.
- Parem, já não aguento mais. – gritou.
- Está bem, vamos sair, mas voltamos para saber como estás. Depois teremos que falar com o conselho e preparar tudo para, quando o tempo chegar, poderes assumir o teu destino. – disse Nehone, fazendo um sinal a Tuluka para recolher as suas coisas e partirem.
Amanhecera, mas mesmo assim a saída dos dois passou despercebida, a não ser para Juba de Leão que, involuntariamente, ao vislumbrá-los a atravessar o espaço entre a casa dos netos e a do outro lado, estranhou o facto de ver juntos o irmão e o curandeiro, logo pela manhã, com o ajudante caminhando atrás com o familiar saco de ráfia, que ele sabia conter o cesto de adivinhação. Não se preocupou, perguntar-lhes-ia em devido tempo.
Na casa do jovem casal, Nazamba ainda passeava de um lado para o outro, enquanto que Nataniel, cotovelos apoiados nas pernas, embrenhava a cabeça nas mãos em concha, evitando olhar para a esposa. Estava seguro de que suas vidas acabavam de ser transformadas, nunca mais seriam as mesmas. As portas desconhecidas que lhes foram abertas e reveladas, carregavam sinais que jamais esqueceriam. Preocupou-se com o filho na barriga de Nazamba, até que ponto fora afectado pelo transe da mãe, viria de igual modo a ter as capacidades de médium?
- Acreditas mesmo no que viste? – perguntou, por fim, Nazamba.
- Não sei o que responder. Eu vi, Nazamba, eu vi-te desmaiar quando o velho Tuluka te anunciou que serias a próxima rainha. Vi-o dançar à tua volta, sempre aspergindo-te com um líquido qualquer, e quando começaste a falar com a voz de um homem, desmaiei de medo, acho.
- Mas não ouviste essa voz anunciar o que esses velhos malucos afirmaram?- Não, estava inconsciente.
- E então? – insistiu Nazamba.
- E então o quê?
- O que fazemos? – insistiu, ela.
- Acho que devíamos partir o mais cedo possível, irmo-nos daqui tão rápido quando possamos.
Nazamba parou de andar e sentou-se ao lado do esposo. Acariciou-lhe a cabeça e sorriu, surpreendendo-o pela mudança abrupta de disposição. Endireitou o corpo e olhou para a mulher com um ar apalermado que a fez rir.
- Nataniel, acabo de ter ume premonição muito forte para que aceite o que me foi oferecido. – disse, sem espaço para dúvidas.
- Estás a sentir-te bem? – perguntou-lhe, perplexo.
- Nunca me senti tão bem na minha vida. Sinto-me vindicada e por isso desejo assumir o meu destino.
- Vindicada? Assumir o teu destino? Francamente, Nazamba, não te entendo.
Não será necessário, meu amor.
- Já não há mais nada a entender, tudo está claro.
- Explica-te, por amor de Deus, estás a deixar-me preocupado.
- Não tens razão para te preocupar, sendo o príncipe consorte. – disse ela, rindo abertamente.
Nataniel, julgando que a esposa estivesse a divertir-se à sua custa, relaxou e riu de igual modo. Ergueu-se e bebeu um copo de água, com um gesto perguntando se também desejava.
- Não, obrigado. Daqui a um pouco vamos matabichar - disse, galhofeira.
- Espero que a tua mãe chegue em breve, para podermos partir.
- Não iremos sem ter esta situação resolvida e quero que ela seja testemunha.
- Mas Nazamba, testemunha de quê?
- Do cargo que me foi proposto.
- Cargo? Mas não te foi proposto cargo nenhum, mas sim a nossa desgraça, se é que estás a falar a sério. – disse Nataniel, levantando-se bastante agitado.
- Nataniel, já te afirmei que nunca estive tão séria na minha vida.
- Mas tu, que não sabes nada desta vida...
- E daí, não posso ser iniciada como qualquer outro?
- Nazamba, já olhaste bem para ti?
- O que queres dizer?
- Olha para ti... estás em África e não na Europa.
- Também queres dizer que por eu ser mulata não tenho os mesmos direitos que qualquer outro angolano?
- Os mesmos direitos claro que os tens, mas...
- Mas?... Até tu, Nataniel, meu esposo, fazes uma afirmação dessas?
Tenho que a tirar daqui, nem que seja com estes argumentos...
- Não vês que isto é um país negro?
- Angola não é um país negro. É um país com uma maioria negra e com outras minorias com os mesmos direitos à cidadania, essa é a diferença. – Disse, zangada. - Verdadeiramente surpreendes-me...
- É a vida, não sou eu. Não estamos preparados para tal!
- Ai não? Mas os velhos parecem estar, e afirmam que foram os antepassados que assim decidiram! O que dizes?
- Uma coisa são estas lutas intestinas, em que se usa tudo para se chegar a um fim, outra...
- Mas não foste tu próprio que viste, e por três vezes, o resultado da adivinhação? Afinal desmaiaste por que razões, para me impressionar?
Nataniel não soube o que responder, efectivamente testemunhara e não vislumbrara qualquer possibilidade de batota, os amuletos tinham sido lançados sobre o luando e o elefante fêmea caíra sobre o dente de leão, pela simbologia evidente, até ele poderia chegar à conclusão de que algo não natural se passara.
- Nazamba, vamo-nos embora, depois mando cá alguém apanhar a tua mãe. E estás grávida, não esqueças.
- Não vou, Nataniel. Estou como o avô Nehone, quando disse quem falou sabe o que está a falar.
- Não imaginas sequer que pode ter sido uma trapaça e que eu me tenha auto-sugestionado?
- Mas não te auto-sugestionaste quando levaste os testículos do cabrito contigo para Cuba, não foi?
Possa, será que não desiste?
- Era criança...
- Mas guardaste o pacote e trouxeste-o de volta!...
- Só para agradar aos velhos... – tentou desculpar-se, sabendo que assim não era, pois
sempre crera que aquilo fora a sua protecção, a sua garantia de um retorno conseguido
- Também quero agradar...só que pelo percurso inver
- Ai meu Deus!... Nazamba, o que será a nossa vida se nos metemos nisto?
- Não finjas que perdeste toda a tua infância, que o que aprendeste e testemunhaste em criança, foi tudo por água abaixo pelo ralo da tua educação cubana?
- Claro que não, mas não quero voltar, regredir, sou outro homem e tenho o direito a isso. Não tenho que acreditar em feitiços, possessões e predestinações para ser africano.
- Certo, mas o que mudará se eu aceitar?
- Tudo, Nazamba. Tudo. As nossas vidas nunca mais serão as mesmas.
- Não mudará em nada. Continuaremos em Luanda e eu desloco-me aqui regularmente.
Mesmo extremamente agitado, Nataniel encontrou forças para rir. Achou que a mulher ou estava a levar a brincadeira longe de mais, ou sofrera alterações psicológicas que ele não entendia. Maldisse a hora em que o avô a mandara embora. Enfrentava uma situação que não podia controlar, sobretudo porque impotente desde que Nazamba mantivesse a disposição de entrar nas jogatinas de Nehone e de Tuluka que, como mestre adivinho, carregaria muito peso numa reunião do conselho quando o tempo chegasse. A não ser que tudo denunciasse a Juba de Leão, mas ao fazê-lo iria desencadear situações bem piores que poderiam eventualmente conduzir a mortes, por vinganças e feitiços. Teria que mostrar paciência e levar a esposa a abandonar o desejo revelado, desejo esse certamente de vingança insculpido no escuro do seu íntimo, alimentado por anos penosos de sofrimento recalcado e quase sempre amordaçado, que agora a aguilhoava com obstinação messiânica.
- Não me levas a sério, é? – perguntou Nazamba.
- Claro que levo, porém acho que essa tua porfia em quereres vingar-te...
- Querer vingar-me? – cortou. – Vingar-me de quem e do quê? Já não perdoamos, eu e o Tomás, ao nosso avô?
- Nazamba, isso é o que o teu emocional diz, mas o recôndito do cérebro empurra-te para este acto ilógico e perigoso.
- Até pode ser, mas se pensares claro, logo verás que o meu gesto ultrapassa tudo isso, vai bem mais longe.
- Vai até aonde?
- Até aos direitos de igualdade para todo o cidadão, vai até à cidadania. Nataniel, não podemos ter cidadãos de primeira uns, e outros de segunda, ou somos ou não somos.
- Mas quem disse que há essa distinção? A Constituição é clara.
- Exacto, a Constituição está clara, mas na prática tornam-na obscura, tu próprio usaste os mesmos argumentos. Porque é que um mulato ou qualquer outra cor não pode governar, se assim for desejo de quem os poderá eleger?
Nataniel sentiu-se agastado e, pela primeira vez no relacionamento de ambos, voltou as costas à esposa e saiu, sem uma palavra. Esta, passou a mão pela barriga, ligeiramente protuberante, sorriu e viu-se fortificada, o marido não tinha argumentos a contrapor-lhe. Remeteu-se a preparar o mata-bicho para ambos, ciente de que tinha a capacidade, o desejo de regressar às raízes africanas sob a batuta dos dois velhos, e de aprender o que fosse relevante ao ofício de dirigir. As mentes, mesmo as rurais, já não eram tão tradicionais, a televisão, entre outros, encarregara-se de as modificar. Bastava-lhe dar força e proeminência a Tuluka como conselheiro espiritual e colocar o tio-avô Nehone como regente nos períodos em que estivesse em Luanda. Estava certa do que eles alentavam, no fundo, a condução do exercício do poder, que a ela pouco interessava por concreto, já que lhe seria unicamente um meio para alcançar um fim.
Uns cinco dias mais tarde, durante os quais Nataniel pôs toda a sua diplomacia, paciência, argumentos e até ameaças para demover a esposa de tão absurda pretensão, a maior das comoções aconteceu quando, ao meio da manhã, um pequeno grupo de soldados, não os mesmos que lá tinham estado, vindo das matas, apareceu com Balanta à frente.
As mulheres, ao reconhecerem a velha, atiraram para o ar os seus gritos estridentes de alegria, logo acompanhadas pelas crianças e pelo burburinho dos homens que, mais reservados, foram observando de longe, sabendo que o soba é que teria que pronunciar-se, até porque da sua filha se tratava. Alertada, Nazamba deitou a correr, meia vestida, as gritos, gesticulando os braços, mesmo não fazendo noção da cara da progenitora, agora cansada, revestida de cãs e rugas sofridas.
- Minha mãe... minha mãe...
Balanta parou, levou a mão ao peito, reconheceu a filha e partiu ao seu encontro, igualmente aos gritos.
- Nazamba... ai Nazamb’éééé!... Minha filha... Ai Marcelo’ééé... nossa filha voltou!...
O amplexo brutal levou as duas ao chão onde rebolaram agarradas uma à outra, em choros e gritos que, para quem de fora, mais pareceriam a celebração de um óbito de que um encontro de familiares separados. À sua volta, as mulheres pulavam e batiam as palmas em cânticos de festejo. A tropa parara a uma certa distância, surpresa e assustada com a manifestação, só lhes fora recomendado que chegassem cedo, entregassem a mulher ao soba grande e partissem logo. Aguardavam que Juba de Leão aparecesse para endereçarem as palavras do seu comandante “Sem Medo” e levarem as dele, após terem comido, não obstante ter-lhes sido recomendado que o não fizessem, que permanecessem o menos tempo possível.
Juba de Leão não apareceu, mandou-os chamar, disse-lhes para agradecerem ao neto o envio da velha, e mandou-os alimentar para que pudessem partir quando desejassem. Nataniel, que se juntara ao avô, passeava nervoso, avaliando se contava, ou não, a tempestade que se anunciava. Considerou não ser seu assunto intervir por agora, Nehone e Tuluka que o fizessem, a sua intromissão seria para mais tarde. Por fim sentou-se e olhou para Juba de Leão.
- E agora avô?...
- O passo não deve ser maior que a perna, vamos deixar a mãe e a filha festejar a sua alegria com os outros. Vai para casa e aguarda que a tua mulher te leve a sogra, mais tarde vou mandar-vos chamar.
- Se o avô acha...
- Mais uma coisa. No outro dia vi o mestre Tuluka e Nehone lá para os lados da vossa casa, foram ter com vocês?
- Connosco? Não avô, teriam vindo de outro sítio. – mentiu, esperando que o velho não notasse. – Porquê?
- Por nada, pareceu-me que vinham de lá.
Virou as costas a Juba de Leão, andando para o outro canto da sala, para que este não lhe notasse o seu ligeiro arfar. Admirou a perspicácia do ancião, talvez já estivesse a chegar aos noventa, na verdade nunca soubera a idade dele, sempre o conhecera velho. mas a mente ainda funcionava, lúcida, o que ele achou, como médico, ser um facto notável.
Mas que idade terá o velho, mesmo?...
- Avô, qual é a sua idade? – perguntou, voltando-se.
A pergunta pareceu apanhar Juba de Leão de surpresa. Seria que o neto lhe estava a ler os pensamentos?
- A minha idade? Que pergunta é essa?
- Sempre conheci o avô já velho! É só curiosidade.
- Nasci há muito tempo. Quando eu tinha a tua idade, o soba grande era o meu tio... E as guerras contra os brancos ainda existiam, e mais estavam para vir. Já lá vai muito tempo. Mas essa pergunta, porquê? Sei que estou velho e a morte não anda longe, não é, meu neto?
Deu um pulo da cadeira como se tivesse sido picado por uma vespa, o que levou Juba de Leão a sorrir e a ter a certeza que Tuluka e Nehone haviam estado na casa dos netos. Agora, faltava-lhe saber o que lá tinham ido tratar, embora o suspeitasse pela reacção de Nataniel. Tinha tempo. Onde se esconde ou guarda a panela de barro, não se procura com o machado.
- Eu?... – e ficou por ali, sem ideias ou palavras.
Estes jovens... estes jovens pensam sempre que enganam os velhos.
- Agora vai para casa, receber a mãe da tua mulher. – disse Juba de Leão a sorrir, espiando Nataniel a sair célere, sem mais uma palavra.
A caminho de casa observou que as mulheres continuavam à volta de Balanta e que a Nazamba estava toda desgrenhada, nunca a vira assim, solta, despenteada por puxar os cabelos na emoção, gesticulante. Apressou o passo e entrou, desnorteado. Sentiu-se impotente, abandonado e com os fados a conspirarem contra si.
A minha mulher, o que se passa com a minha mulher?
Desejava ardentemente voltar, o que dependeria do avô e do enviado que este despacharia ao comissário municipal, solicitando o carro. Sabia que decorreriam horas antes que Balanta fosse lá para casa para ser apresentada, talvez até a esposa se tivesse esquecido de informar a mãe, não obstante a barriguinha, agora disfarçada pelos panos soltos meio amarrados à cintura. Não tivera tempo de colocar um vestido ou umas calças, agarrara no que primeiro encontrara e atirara-se para o meio da aldeia. Como iria Balanta reagir a essa ideia maluca de ela aceitar ser soba grande? Não podia contar com a sogra tinha a certeza, sofrera de igual modo os desmandos do pai, vira o marido partir e os filhos exilados, até ao dia em que Tomás apareceu pela primeira vez na aldeia feito anjo vingador, pensando a mãe morta. Seria uma poderosa voz junto à filha e as duas avançariam desabridamente pelos desígnios de Nehone e Tuluka com as suas trapaças, como é que a mesma adivinhação se repetia igualmente por três vezes, mesmo sob os seus olhos?
Não é que não acredite na força dos antepassados, tudo é possível, mas aqueles velhos andam muito confiados, ali há manobras.
Estava minimamente familiarizado com a auto-sugestão, muitas vezes a aplicara em pacientes que sabia terem sofrimentos hipocondríacos, a aspirina tomando o lugar do remédio milagroso que os curava e os levava à próxima maleita.
Quando o sol ameaçava esconder-se por trás das montanhas, em sua enorme palidez alaranjada, Nazamba irrompeu pela casa com Balanta quase que arrastada, seguidas por uma chusma de mulheres que se acomodaram pelos cantos da sala como puderam.
- Mãe, este é o Nataniel, teu sobrinho e meu marido.- Atirou, assim de chofre.
Balanta olhou para ele a tentar descortinar o parentesco, e por fim acertou.
- Aquele que foi estudar fora, o filho de Epalanga com Zeferina?
- Sim, esse mesmo. Voltou de Cuba médico, conhecemo-nos sem saber que éramos parentes, e depois casámo-nos.
- Muito bem, assim agora você também é meu filho, vem para eu te abençoar.
Sem saber o que fazer, olhando para as outras mulheres e desejando correr com todas elas dali para fora, dirigiu-se à mulher, esperando que esta entendesse e pusesse fim a toda aquela situação angustiante.
- Olha como tu estás, precisas de te arranjar e deixar a tua mãe descansar... estiveram o dia todo fora. – disse, tentando alertar a esposa para a sua ansiedade.
- A nossa mãe quer abençoar-te primeiro, à frente de todos, depois terás a tranquilidade que desejas.
Nataniel dirigiu-se à velha, curvou-se, agarrou nas mãos dela e colocou-as meio na testa, meio na cabeça.
- A sua benção, minha mãe, que ela traga a felicidade à nossa casa e ao nosso casamento.
Ouviu Balanta murmurar uma cantilena que não entendeu e sentiu as mulheres sairem, silenciosas e felizes.
- Estão abençoados e protegidos. Tuluka já vos fez as cerimónias desde que chegaram?
- Não, mãe. Estávamos à sua espera. – mentiu Nazamba.
- Então vamos ter que falar com ele. Quanto mais cedo melhor.
- Obrigado, deve estar cansada e precisa de lavar-se, eu vou dormir hoje noutro lugar. Quando estiverem prontas mandem-me chamar para jantarmos juntos e falarmos tudo o que tem que ser falado. – disse Nataniel, olhando para a esposa, mais uma vez buscando o seu suporte.
- Está bem, depois mandamos chamar-te. – respondeu Nazamba, antes que Balanta pudesse expressar qualquer outro desejo ou intenção.
- Com vossa licença então... – respondeu Nataniel, esgueirando-se de imediato.

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