sábado, 2 de janeiro de 2010

A PRECE DOS MAL AMADOS - CAPÍTULO OITO


O REGRESSO IMPRÓDIGO

Onyoka ili-po kaihetekwa n’otymuti· (provérbio nyaneka)


A aurora tentava timidamente romper a neblina espessa que envolvia a aldeia. Um galo cantou, despertador de todos os outros, a indicar o novo dia que raiava. Os primeiros a acordar, anicharam-se nos cobertores que os agasalhavam, lutando contra a vontade de assim permanecerem mais um pouco. Logo as mulheres se levantariam para reavivar os fogos onde poriam a água a ferver e aqueceriam a comida da véspera. O chilrear da passarada nas árvores, em breve confirmaria que o dia efectivamente se despia das vestes nocturnas, afastando, com o seu bafo cálido, o nevoeiro que ainda pairava teimoso.

De repente, o furioso ladrar dos cães não deixou dúvidas de que gente estranha e numerosa se aproximava, e os que pensavam saltar dos catres onde dormiram para as lides da agricultura, encolheram-se porque bom presságio não augurava, ninguém chega sem ser anunciado tão cedo pela manhã. A confirmar os seus temores, logo ouviram um burburinho de vozes, ordens e passos rápidos em movimentação. Os cães mais ousados que ousaram arreganhar para os intrusos, foram ponteados ou apedrejados, partindo a ganir para longe.

- Meu avô, o senhor ainda vive?

Ao reconhecerem a voz trovejante de Tomás, as pessoas sustiveram a respiração, como se assim conseguissem esconjurar para distante os malefícios descendidos sem aviso, num pesadelo de novo revivido. Desta vez não escapariam, tinham sido apanhadas que nem pássaros no visgo, a guerra fora esquecida através dos anúncios constantes da paz e das eleições, relaxaram os postos de aviso e agora pagariam caro pelo desleixo, temiam anichadas em suas casas, no silêncio dos fogos apagados e temores sem fim.

- Meu avô, estamos em paz, pode aparecer! - Atirou outra vez aos ares, com uma gargalhada, logo ecoada pelo resto da tropa que com ele chegara.

De sua casa surgiu Nehone, tentando compor a carapinha. O facto de nenhum tiro ter sido disparado nem porta qualquer arrombada, criara-lhe ousadia suficiente para fazer face ao perigo.

-Se voltaste para nos matar, toma cuidado porque a tua irmã está connosco.

Tomás não percebeu o que o seu tio-avô quis dizer.

-Irmã, que irmã? Esse velho pirou de vez?

- Não precisa ter medo, estamos em paz, vim só visitar a minha aldeia e saber se o meu avô, o grande soba Juba de Leão ainda ruge. – Disse, entre novas gargalhadas.

- Se vens para nos atacar, toma cuidado a Nazamba está connosco.

Tomás ficou sem palavra. Por um longo momento a sua mente ficou apagada, a mais vasta e inesperada escuridão toldou-lhe a visão e o cérebro. Quando voltou a si, o velho já se encontrava diante dele, erecto e mais seguro, depois de ter percebido que o sobrinho neto fraquejara ao ouvir o nome da irmã. Certamente que nunca esperara desenterrá-la dos confins do ódio antigo que a proscrição do avô causara.

- A minha irmã, a Nazamba está cá, voltou? – Perguntou, inseguro.

Já te baixou a arrogância toda, não é? Espera e logo verás...

- Sim voltou, mas vive em Luanda. Veio nos visitar, com o marido dela, o teu primo Nataniel.

Duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelos olhos, em sulcos que já denotavam uma velhice precoce, sem se aperceber que lacrimejava. Os companheiros fixavam-no, atónitos, o seu grande e indómito chefe, o general Tomás, codinome “Sem Medo”, chorava ao pronunciar do nome de uma mulher, sua irmã. Incomodados, recuaram, deixando-os sós. Alguns deles, os que o acompanhavam há mais tempo, sabiam que esta era a aldeia do soba Juba de Leão, seu avô, a quem ele tentara matar pelo menos duas vezes, numa vingança nunca muito bem explicada. Quando aqueles mais íntimos procuraram saber o porquê de tal acto, encontraram sempre uma desculpa enviesada, um motivo escuso, quando não um silêncio contumaz. Talvez ali viessem verdadeiramente a saber o que se passara, que mola impulsionara, sem causa justificada, um neto a desejar acabar com o avô.

Se estiveres a gozar comigo, juro que te mato.

- Não estás a brincar comigo, velho caduco! – Rugiu, agressivo.

- O meu neto deveria saber que não é assim que se fala a um mais velho.

Também foste um deles, agora queres respeito?

- Mais velho?... – Perguntou vagamente

Nehone olhou-o profundo nos olhos e leu o medo que Tomás aparentava não ter, ou querer mostrar. Apanhado em despreparo pelo coice brutal da afirmação, o seu castelo ameaçava ruir, tão frágeis eram os caboucos argamassados com o lodo emocional reprimido, e o ódio.

- Deixa-te lá dessas estórias seu fingido e responde à minha pergunta. – Respondeu Tomás, no mesmo tom, propositadamente desrespeitoso.

- Não estou a fingir nada, a tua irmã está cá e daqui a pouco vais falar com ela.

- Se tudo o que me contas é mentira, nem a paz te salva, vais comigo, podes ter a certeza.

Nehone sorriu. Olhou para a arma do neto, que pronto a pôs a tiracolo, apanhado na surpresa curva do olhar do velho.

- Vão para o jango e sentem-se lá, vou falar com o teu avô e com a tua irmã e cunhado. Não temos comida para todos os que vieram contigo, já agora.

- Não é preciso, vai, que vou para o jango. – Disse, numa voz ansiosa.

Se esse velho me está a aldrabar, juro que não viverá.

Dirigiu-se, com mais uns outros quatro responsáveis para o jango, atento e desconfiado, não era agora que as hostilidades pareciam ter acabado que iria cair num logro. Uma coisa era o palavreado dos políticos nas cidades e nas conferências para o consumo público, outra era o que se desenvolvia no terreno. Ninguém lhe ordenara a desmobilização e a entrega de armas ou qualquer coisa parecida. As ordens eram para se manterem nos seus lugares e vigilantes, e se fossem provocados, dar resposta imediata e de valor.

Toma cuidado, não vá ser uma armadilha... melhor será colocar mais vigias.

Nunca deveriam esquecer que a sua luta havia obrigado os cubanos a sair, eles que representavam a maior força anticomunista em África, o exército que os combatia encontrava-se desmoralizado e as eleições já estavam ganhas, nunca lhes roubariam essa certeza. O governo, após dezoito anos de má governação, estava liquidado, ninguém de verdadeiro juízo iria eleger os que abusivamente reinaram todo esse tempo sem mandato do povo. Calcorreara o país e vira e sentira que nas políticas de Luanda imperavam o nepotismo, o tribalismo e o racismo, em contradição com a gasta verborreia de Cabinda ao Cunene um só povo uma só nação, abaixo isto, abaixo aquilo, lacaios para aqui, fantoches para ali. Na sua organização, não se enfiara essa carapuça. Lacaios, a havê-los, seria dos dois lados, com os cubanos corridos do país, com os soviéticos a desmembrarem-se, os donos do poder haviam perdido os apoios e os suportes, estavam entregues à sua sorte. Eles iriam mostrar o que era o verdadeiro poder popular, desabrochado e colhido no âmago profundo de Angola, nunca mais os iriam aldrabar.

- Coloquem mais vigias na periferia da aldeia e não deixem ninguém sair. – Ordenou para um dos responsáveis da tropa que o acompanhara. – E uma outra coisa, tenho um assunto de família a resolver e peço que me deixem sozinho, esperem debaixo daquela árvore, vou mandar milho e água.

Momentos depois viu uma mulher, enfiada numa camisa e calças desalinhavadas, cabelo por pentear e seguida de um homem, correr para si. O coração pulou-lhe desordenadamente, tentou reconhecer a irmã, figura apagada, para não dizer enterrada, nas suas mais profundas recordações.

- Meu irmão, ai meu irmão, Tomás, Tomás... – gritava Nazamba, seguida de Nataniel.

De longe, pela porta entreaberta da choça, Juba de Leão, observava, atento e excitado. Não desejava perder um gesto nem a emoção do encontro dos dois netos. A população masculina mantinha-se afastada, receosa da tropa que, de maneira discreta mas visível, se mantinha à distância. As mães, mantinham os filhos em casa e muitas conseguiram escapulir-se para a mata circundante.

Quando Nehone viu Nazamba dirigir-se ao irmão, fez um compasso de espera e depois foi ter com eles, desejoso de assistir de perto ao reencontro. Parou ao lado de Nataniel, para quem olhou e sorriu.

Tomás manteve-se de pé e estático, preso pela emoção e para não fraquejar. Tinha que manter a disciplina própria perante seus homens, não deveria deixar-se levar pelas emoções. Quando reconheceu os traços familiares, avançou para ela e abraçaram-se num cerrado amplexo. Escondeu a sua cara no ombro da irmã para que não se notasse que o coração vencera e que as lágrimas escorriam em catadupa. Silenciosos, mantiveram-se abraçados por longo tempo.

- Minha irmã, deixa-me recompor, - ciciou-lhe, por fim, ao ouvido. – A tropa não me pode ver assim.

Nazamba apertou-o mais contra si, sentindo-lhe a angústia. Compreendia o seu pedido e a sua ansiedade. Achou que teria muitas oportunidades de o abraçar e de se falarem, não podia permitir que os soldados notassem os sentimentos e emoções do irmão.

- Recompõe-te, estão longe. Como eu esperei por este momento. – Disse, começando lentamente a desenvencilhar-se do abraço.

Tomás, por sua vez, largou-a e olharam-se face a face, sorridentes. Nataniel, que mantivera uma distância respeitosa, a passos lentos caminhou para eles, seguido de Nehone, esperando que Tomás se sentisse mais refeito.

- Tomás, este é o Nataniel, meu marido e também nosso primo. – Disse Nazamba.

- Muito prazer, cunhado. De facto não me lembrava de ti, és o filho de...

- O meu pai é o teu tio Epalanga e a minha mãe a D. Zeferina...

- Assim somos primos como irmãos!... – Disse Tomás, tentando vislumbrar o nível de parentesco.

- Não, somos primos em segundo grau. - Respondeu Nazamba.

- Mas isso agora não interessa. – Disse Nataniel. Sê bem-vindo entre a família, vem à nossa casa para mandarmos saber quando o avô te poderá receber.

Tomás sentiu um baque no coração, nunca entrevira que a irmã estivesse de volta e ainda por cima casada com um primo, muito menos a possibilidade de fazer face ao avô em posição de fragilidade. Viera para o amedrontar, para se vingar, para ouvi-lo implorar nem que fosse com o olhar, nunca para ter uma conversa amena ou controlada pelos acontecimentos que encontrara. Todavia a presença de Nazamba também lhe dava força, pois sabia que o sentimento de rejeição lhes era comum, o velho soba teria que os confrontar a ambos.

- Vão para a casa de Nataniel, eu vou falar com o vosso avô, que certamente já vos deve ter visto. – Sentenciou Nehone.

- Pode tranquilizar toda a gente. – Disse Nazamba, agarrando os dois homens pelos braços e conduzindo-os para a casa que lhes fora construída.

- Vivem aqui? – Indagou Tomás, mais para fazer conversa.

- Não, viemos visitar o nosso avô pela primeira vez após o meu regresso. Antes não nos era possível – respondeu-lhe a irmã.

Tomás sobressaltou-se, e Nazamba olhou para ele preocupada. Só depois é que deu conta do conteúdo da afirmação e percebeu que o estava involuntariamente a culpar pelo facto. Sorriu-lhe e apertou-lhe o braço, cerrando-o mais a si.

- E o meu cunhado, o que faz? – Perguntou Tomás a Nataniel.

- Sou médico. Formei-me em Cuba e trabalho no Hospital Militar.

- E a minha irmã?...

- Sou formada em direito comercial.

- Só eu é que não sou nada... – disse Tomás com mágoa.

- O que é isso? Não és nada? Não és general?

- O que é isso, senão um atestado, um diploma para matar?

- Tomás, não digas isso. A paz está aí e serás integrado no exército comum que será formado. – Respondeu-lhe Nazamba.

- Acreditas?... – Perguntou-lhe Tomás.

- Porque não deixamos essa conversa para mais tarde? É hora de matabichar. – Protestou Nataniel, aborrecido com o rumo da conversa.

- Não olhes para a casa. – Pediu Nazamba.

- Casa? Há anos que não sei o que é uma casa, para mim é um palácio. – Respondeu Tomás com uma gargalhada franca.

- Melhor ainda, assim logo te habituarás aos confortos da paz e da tranquilidade.

Entraram e sentaram-se à volta da mesa. Nazamba chamou pelos moleques e mandou-lhes acender o fogo na cubata ao lado que entretanto tinham mandado erguer para servir de cozinha, com um fogão antigo a carvão

- O que queres comer?

- Para ser franco, queria um pirão com galinha.

- Mas isso vai demorar. – Disse Nazamba.

- Não faz mal, eu espero. Achas que vou querer ovos estrelados? – Riu Tomás.

- Tens razão, não leva assim tanto tempo a preparar.

Deu as instruções aos miúdos, recomenda-lhes pressa, o que não era necessário por estarem aterrorizados pela presença de Tomás e da tropa, assim, quanto mais rápido comessem, mais rápido dali se iriam.

- Mana, dá-me um copo de água, estou com muita sede.

Nazamba olhou para ele e desatou a chorar, em soluços. Sobressaltados, entreolharam-se sem saber como reagir.

- O que foi, Nazamba? – Perguntou-lhe por fim Tomás.

- É a primeira vez que me chamam mana, em décadas. - Respondeu, a rir e a tentar controlar o choro.

- Então essa água vem ou não vem? – Perguntou Tomás, para que a emoção não tomasse conta de si.

- Só que não está gelada, mas está fresca. – Afirmou Nazamba, um pouco mais calma.

- Gelada? - Tomás riu novamente. – Estás a esquecer que vivo no mato e não na cidade?

- Desculpa Tomás, não faço por querer, é o hábito.

- É o que dá viver nos confortos das urbes! – Disse Nataniel, tentando humorar.

- E o nosso avô, está mesmo bem? Ouvi por aí muitas coisas.

- Está. – Respondeu Nataniel. - Claro que velho, mas sempre o famoso Juba de Leão.

- Acham que vai ter medo de me ver?

Oh meu irmão, tira esses desejos da tua alma!

- Espero que não, acho que não. – Respondeu Nazamba.

- Pois eu espero que sim, que sinta um terror horrível ao ver-me. – Afirmou Tomás, com violência.

Nataniel e Nazamba olharam para ele e não souberam o que dizer, não o conheciam. Qualquer palavra ou frase imprópria poderia levar o reencontro para rumos não desejados. Talvez fosse bom o velho sentir esse medo terrível, como forma de se manter a situação equilibrada.

- Meu irmão, só tu sabes os caminhos por que andaste e o que te custou a caminhada, mas o ódio nunca resolveu nada. Olha que para mim, também não foi fácil.

Por uns largos momentos Tomás concentrou o seu olhar sobre a irmã que, meio angustiada, tentava ler o que neles pudesse ser visível. Por fim desistiu, da alma dele nada transparecia.

- E o nosso pai? O que é feito do nosso pai? Sabes que o capim e o mato acabaram por comer tudo o que era dele?

Nazamba teve receio de responder, não o queria enfurecer ou amargurar ainda mais. Não lhe poderia contar que o velho morrera atormentado e alcoolizado e que ela muito contribuíra para isso.

- O nosso pai faleceu há muitos anos e foi bom que nunca tivesse sabido que o que lhe pertencia fora destruído, pelo homem e pela natureza.

Tomás não fez qualquer comentário, talvez se encontrasse por ora satisfeito com a resposta. A imagem que perdurara do progenitor era a de despedida em Luanda, um abraço forte e fugidio e ele a deitar pela rua a correr para esconder as lágrimas e não gritar o seu ódio, ódio pelo avô e por tudo o que rápida e incompreensivelmente se desenrolava à sua volta. Eu fico pai, foi o que lhe dissera, não em gesto de bravata ou independência, mas sim o mastigar e ruminar inconsciente da futura vingança e com ela poder um dia domar ou apagar para sempre o vulcão que Juba de Leão abrira. Os do sul, como afirmara ao pai, iriam acolhê-lo, falava a sua língua e neles logo viu que o seu ódio podia crescer, indomado e cheio de objectivos. Não precisou de rumo, mas sim de caminhos, que foram inúmeros, a fome da morte que fuzil sente é farta, basta o coração premir o gatilho e logo o estampido reverbera pelo inconsciente em alegria do dever cumprido. Foram sendas tortuosas e inesperadas, talhadas pelo capricho, que o levaram à mãe e, agora, à irmã.

- Meu cunhado, não fumas?

- Não, por acaso não, mas posso mandar arranjar tabaco.

- Agradeço, eu sem cigarro passo mal, até já fumei barba de milho, aliás quase que só fumava barba de milho.

- Barba de milho? – Perguntou Nazamba, admirada e a rir.

- Barba de milho ou qualquer outra porcaria que servisse, até mesmo só folhas secas enroladas, o pior era depois a sede.

- E porque não paravas de fumar?

- Parar de fumar? Minha irmã, tu me surpreendes, o mato é a nossa prisão, toda a minha vida tem sido uma prisão... mas não desejo falar disso agora. Esse mata-bicho vem ou não vem? E olha que não quero água a acompanhar, manda vir bebida que empurra o pirão se faz favor.

- Não te preocupes, o Nataniel tem uma garrafa de vinho que até parece que estava reservada para ti. – Disse Nazamba, já mais tranquilizada.

- Esta bem, obrigada, mas esse velho tem que servir cerveja de milho, a minha tropa precisa de beber.

- Queres embebedar a tropa? – Perguntou Nazamba, cenho franzido.

- Não foi isso o que disse ou sugeri, é gente bruta e habituada a todo o tipo de agruras, precisa de descansar um pouco, comer e beber. Fica contente e quieta.

Ouviram-se uns passos e um dos moleques apareceu a anunciar que a comida estava pronta, se a podiam trazer. Nazamba colocou os pratos na mesa e foi buscar a garrafa de vinho ao armário, entregando-a a Nataniel para a abrir. Com carinho, serviu o irmão e o marido, que a olhou a sorrir.

- Nada como a presença do Tomás para me servires! – Disse, em galhofa.

- A minha irmã não te serve a comida? – Perguntou Tomás admirado.

- Não, a pré-história já passou há milhões de anos. - Respondeu Naza

- O que queres dizer com isso? - Insistiu Tomás.

- Quero dizer que as mulheres têm direitos iguais, não as há a lutar ao vosso lado?

- Claro que há, mas elas é que apanham a lenha e cozinham...

- Então, vai o vinho ou não? – Perguntou Nataniel, para mudar o fio à conversa.

- Serve, cunhado. Vamos encher as barrigas para podermos falar bem com o nosso avô,

já irei melhor disposto.

- Eu só vou petiscar, não estou habituada a comer pirão pela manhã. – Disse Nazamba.

Os dois homens riram e concentraram-se nos pratos cheios. Por uns longos momentos nada mais se ouviu a não ser o retinir dos talheres nos pratos e o virar do vinho nos copos. Encostada à cómoda, Nazamba observava-os, agora os dois homens da sua vida. O facto de Tomás se encontrar ali diante de si ainda não penetrara como um acontecimento real, mais lhe parecia um sonho que a deixava simultaneamente feliz e preocupada, atendendo a que qualquer momento se esvanecesse.

- Tomás, sabes da nossa mãe? - Atirou Nazamba de chofre.

Sem levantar os olhos, Tomás retesou o corpo e sorveu o vinho. Limpou a boca com as costas da mão e pelos gestos de nervosismo, deu a entender que a pergunta era indesejável. Nazamba de imediato se postou a seu lado, tensa, certa de que ele tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Balanta. Farejou a presa, não se lhe escaparia incólume em evasivas.

- Tomás, fiz-te uma pergunta, por favor responde-me. – Insistiu, ríspida.

- Posso entrar? – Ouviu-se a voz de Nehone, enquanto empurrava a porta semi aberta.

- Entre avô, entre. – Respondeu Nataniel levantando-se e oferecendo-lhe a cadeira. –Sente-se aqui, eu já comi. O avô quer comer?

- Obrigado meus filhos, comer não quero, petiscar talvez ...mas sem vinho.

- Sente-se aqui que eu já o sirvo. – Disse Nazamba.

- Só um pouco, minha neta, só um pouco. O vosso avô Juba de Leão vai receber-vos em breve, não o façam zangar. – Disse, olhando para Tomás.

Estás muito preocupado com isso, o que vai ele fazer, correr comigo e com a tropa?

- Não se preocupe, saberei comportar-me. – Respondeu secamente Tomás.

-Temos muito que conversar, meu neto. Muito, mas só mais tarde, vais ficar até tudo se resol

- Tudo o quê?´

- Tudo! Depois falamos. - Disse Nehone sem querer ser misterioso.

Nataniel e Nazamba entreolharam-se, o velho voltava à carga, sentiram-se incomodados.

- Coma, coma, senão arrefece. – Disse Nazamba, apontando para o prato.

- Já falaram muito? – Perguntou Nehone.

- Nem por isso, ainda somos meios desconhecidos. – Respondeu Nataniel.

- E o que é que falou com o avô Juba de Leão? – Perguntou Nazamba.

- Então agora os mais velhos já prestam contas aos mais novos?

- Então nunca ouviu dizer que os mais velhos também dançam ao batuque dos mais

novos? – Não se conteve Tomás.

- Dançam sim senhor, mas se notares bem vais ver que os passos não são os mesmos, assim como deves saber que os mais novos aprenderam a tocar a partir dos mais velhos.

- Assim é que se fala, meu avô. – Disse Nazamba a brincar, para cortar a latente tensão.

- O soba está preocupado, pensa que Tomás veio para se vingar e diz não estar seguro dessa paz quando mesmo o neto dele entra arrogantemente por aqui, e ainda por cima com a tropa.

Raio do velho, deve estar maluco!

- Mas ele queria que eu viesse sozinho? Há dias que estou nas redondezas, a observar, a ver quem entra e quem sai. Acham que vinha só assim? Os que assinaram a paz não estão aqui connosco, eles estão lá nas cidades, nós é que morremos se não tivermos cuidados.

- E não me tinhas visto, Tomás? – Perguntou Nazamba.

- Não sou eu que faço de vigia e de busca, minha irmã, é a tropa e não tinha razão para notar qualquer um em especial, a não ser que estivesse fardado. Mulatos há por todo o lado, nuns sítios mais, noutros menos.

- Quer dizer, se tivesses atacado ter-nos-ias morto a todos!

- Não tinha razões para ser eu a quebrar o cessar-fogo. Vim cá só para meter medo ao velho Juba de Leão, nosso avô poderoso que correu connosco daqui, não esqueças.

- Vocês os homens só sabem fazer guerra, se parissem os filhos talvez assim não acontecesse. – Disse Nazamba com amargura na voz.

Onde é que já se viu isso, homem a parir filho?

- Mas que ideia, só podia vir mesmo da cabeça de uma mulher! – Disse Tomás a rir.

- E o que tens tu contra as mulheres, a tua mãe não é uma?

- Nada minha irmã, não tenho nada, mas se Deus quisesse os homens a parir, assim teria sido e não é. Quem tem os filhos são vocês.

- Também, de quem anda por aí a fazer a vida dele a matar!

- Nazamba!... – Sibilou o marido.

Tomás preferiu não dar importância ao remoque, desejava não confrontar de modo algum a irmã e, aliás, o que afirmara era a verdade. Toda a sua existência tinha sido dedicada à destruição, talvez agora a paz lhe trouxesse outro modo de vida, nunca era tarde.

- Não dês importância. – Disse Tomás, dirigindo-se a Nataniel.

- A juventude tem que estar sempre a discutir... – suspirou Nehone, acabando de comer. – Tragam-me um copo de água.

Nazamba dirigiu-se ao moringue e encheu uma pequena jarra, levando-a para a mesa onde a poisou após ter servido o velho.

- Mas o avô não acha que tenho razão? – Perguntou Nazamba.

- Mas menina, isso é um disparate, os homens nunca poderão ter filhos. – Respondeu.

- Todos sabemos, mas se pudessem...

- Nazamba, - disse-lhe Nataniel – essa não é a questão, o que estão a tentar dizer-te é que a partir da impossibilidade real, não pode haver especulação intelectual.

- Está bem, já me dei conta de onde me encontro.

- A minha neta está a ofender os seus?

- Não avô, unicamente a reconhecer que estou noutra onda, como dizemos lá na cidade.

- Noutra onda, é assim que dizem? Então qual é a nossa onda, minha neta?

- Oh avô, não ligue. É só uma maneira de falar, de dizer que a forma de pensar sobre isto ou aquilo não é a melhor.

- E eu a julgar que já sabia tudo, hoje aprendi mais uma coisa... – riu, o velho.

- Pois é, as pessoas ao envelhecerem esquecem o que foram e o que fizeram, por isso aprende-se até morrer. – Disse, Nazamba.

- Será que estou a perceber a minha neta um pouco triste?

- De facto, perguntei ao Tomás sobre a nossa mãe e ele fugiu à questão, estou certa de que sabe alguma coisa.

Alto aí, isto é interessante, muito interessante mesmo.

- É verdade, Tomás? – Perguntou Nehone.

Não é da tua conta, porque queres saber?

- Não é hora de falar desses assuntos... – respondeu secamente.

- Está a ver avô? Ele sabe sobre a nossa mãe.

Não te vou deixar fugir, não!

- É verdade, Tomás? – Insistiu Nehone, levantando-se.

- Primeiro temos que falar com o velho, só depois direi o que sei.

- Mas está viva? – Perguntou Nazamba com a voz embarg

- Sim, está viva e de saúde. – Respondeu, para tranquilizar a irmã.

- Não quero saber mais nada, meu irmão! – Disse, atirando-se ao seu pescoço, o que o fez quase tombar da cadeira.

Todos se entreolharam em alegria. O velho cofiava a barba, ganhara mais uma aliada. Nataniel apertava a mão ao cunhado, enquanto que com a outra afagava-lhe o ombro.

Será que este meu neto não me estará a mentir?

- Mas como sabes tu que ela está viva e de saúde? – Indagou Nehone.

- Porque fui eu que a raptei quando ela foi uma vez ao rio. Há muito que esperava essa oportunidade, só não queria é que soubessem que tinha sido eu. Ela está bem e de saúde e preferiu ficar connosco, dizia que mais valia estar com o filho e levar aquela vida errante e de privações, do que viver junto a quem lhe tirara os filhos e o marido. A nossa mãe nunca esqueceu, só temo é que vá morrer de alegria quando souber que a Nazamba também está cá.

- Ai Tomás, leva-me lá, já hoje, já agora! – Implorou Nazamba.

- Não, não pode ser hoje. Primeiro temos que falar com o nosso avô e depois ela tem que ser avisada antes, pode morrer de emoção, não está jovem, com todo aquele sofrimento.

- E está longe? – Quis saber Nehone.

- Não lhe posso dar essa informação, é militar, mas vou mandar ainda hoje avisar, prometo-te minha irmã. E quando chegar a altura, vou mandar buscá-la ou vou eu mesmo fazê-lo. Quando o exército souber que me encontro na aldeia são capazes de mandar tropas, eu devia estar no meu acantonamento e não aqui, por isso seria bom que o avô Juba de Leão desse ordens para ninguém falar, pelo menos pelos próximos três dias.

- Logo se verá, mais uma razão para irmos já ter com ele. Fiquem aqui, que vem cá alguém buscar-vos em breve. – Disse Nehone retirando-se a sorrir porque nada contaria a Juba de Leão, ele que ouvisse directamente da boca dos netos as verdades.

- E o que vamos fazer com a nossa mãe, Tomás?

- Acho que já sofreu muito e deveria ir com vocês para Luanda. Não merece mais continuar aqui no mato, e muito menos agora que encontrou de novo os filhos.

Nazamba olhou para Nataniel, que se acercou e abraçou-a, passando-lhe a mão pelo ombro.

- As palavras de Tomás são acertadas, nunca poderíamos fazer outra coisa e, aliás, esse filho que tens na barriga vai precisar de uma avó para cuidar dele e ensinar-lhe os costumes nossos.

- Estás grávida? – Levantou-se Tomás de um pulo.

- Só essa tua cabeça revoltada é que ainda não deu por ela…

Tomás abraçou-se à irmã e ao cunhado e, mais uma vez, não soube ou não quis conter as lágrimas.

- Hoje é certamente o dia mais feliz da minha vida!... – Balbuciou.

- Ainda bem, assim porta-te como deves na presença do nosso avô, tudo isso é passado. – Pediu Nazamba.

- Sim, é passado mas não deve acontecer outra vez, e é o que acontecerá se esquecermos. Poderei até um dia perdoar ao meu avô, mas esquecer toda esta tragédia, nunca o farei. Temos que ter memória, não é, Nataniel?

- Colocas-me numa situação difícil, concordo que temos que ter memória mas acho que também devemos saber analisar os momentos, se não cairemos sempre nos mesmos erros, por saírem sempre das mesmas emoções desconformadas.

- Tudo isso parece muito bonito meu cunhado, mas os gritos que querem saltar do meu coração são reais. Nunca estudei muito, só quando fui fazer o treino militar em Marrocos e mais tarde no Zaíre, mas sempre aprendi qualquer coisa e sei o que vejo e o que sinto, sei o que devo ou não devo fazer, não virei bicho selvagem, mesmo no meio desta selvajaria toda que é a guerra.

- Sei do que estás a falar porque também participei e, como médico tive muitas dúvidas, mas torna-se-me difícil sentir as causas do sofrimento que o nosso avô vos impôs, por uma medida que ele achou acertada no momento.

- Acertada? – Perguntou, atónito, Tomás.

- Errada, sem dúvida, mas para ele justa porque destituída de qualquer racionalização ou veleidade de entendimento. Foi o que o coração lhe ditou face aos acontecimentos da época e, meu cunhado, entende-me, não o estou a justificar de modo algum, estou unicamente a tentar contribuir para o bálsamo que suavize a dor da tua alma.

- E a minha irmã, sobreviveu a tudo isso?

- Claro que não Tomás, tive muitos problemas, alguns dos quais ainda hoje não consigo falar sobre eles, mas temos que ser nós próprios a tentar entendermo-nos, o que não é nada fácil. Mas para isso existem psicólogos. – Respondeu Nazamba.

- Mas eu não estou doido!

- E quem disse que estás? O psicólogo é alguém que talvez te ajude a encontrares a luz ao fundo do túnel, nada mais. – Insistiu a irmã.

- Olha Tomás, com o nosso casamento e a vinda próxima do filho, a Nazamba encontrou uma harmonia, ainda que relativa... os fantasmas do passado não mais a apoquentam assim tanto. Certamente que a paz e este reencontro da família farão o mesmo por ti, verás. Tens é que ter fé e desejares modificar o rumo da tua vida.

- O Nataniel tem razão, se tu próprio não desejares e não quiseres modificar-te, ninguém poderá fazê-lo por ti. Tem fé em ti mesmo.

Ouviu-se um bater de palmas e um dos enviados do soba grande anunciou-se, solicitando que o acompanhassem, Juba de Leão esperava por eles na sua casa principal. Saíram, Nataniel à frente, procedido dos irmãos que caminhavam lado a lado. De longe, foram alvo de olhares perscrutadores, como se o princípio do mundo estivesse a ter lugar, todos desejavam ser testemunhas oculares do desenrolar dos acontecimentos. Nada do que me contaram, disseram-me, bem, jurar não posso, mas... Não, nada disso, teria que ser eu estive lá, eu vi, eu ouvi, aconteceu mesmo assim, ninguém me disse, tão certo quanto eu estar aqui, podes crer porque testemunhei. Há muito que esperavam ver os irmãos sair após as idas e vindas de Nehone, e, por fim a de um dos dignatários do próprio soba grande. Só um assunto de assinalada importância poderia ter como correio tais hierarquias, mesmo considerados os laços familiares.

A circunstância de Tomás ter deixado a tropa longe tranquilizara muita gente, todavia a pistola à cintura, bem como o sabre e as granadas no cinturão, ainda mantinham outra tanta preocupada. Se as coisas dessem para o torto, será que o neto dispararia contra o avô? Com a irmã e o marido presentes, não se acreditava, porém nunca se sabe o que o diabo reserva para amaldiçoar quem ele quer.

O curto trajecto pareceu a Tomás uma eternidade, os seus passos pesavam e sentiu medo, como se caminhasse para o pelotão de fuzilamento, logo ele, cognominado “Sem Medo”. Esperou que não fosse notado o suor que lhe escorria pelas têmporas e que evitava limpar exactamente para não atrair a atenção para o acto, já que a manhã até estava fresca. Tão forte e arrogante e agora que chegava o momento do face a face com o seu pesadelo, fraquejava que nem donzela em noite de núpcias. Tentou entender o tumulto que o arrebatava, mas mais se atrapalhou e quase tropeçou. Esboçou um esgar de sorriso, fingindo que tropeçara e ergueu o torso, mantendo uma postura militar de desfile.

- Estás a sentir-te bem? – Perguntou-lhe Nazamba, notando a respiração.

- Estou, só espero que não seja um paludismo. – Disse, para se justificar perante o olhar de preocupação dela.

Chegaram e encontraram Nehone à porta, que os mandou entrar, Nataniel primeiro, Tomás depois e, por fim, Nazamba. Mantiveram-se à entrada, sem saber o que fazer ou o que dizer, até que Nehone fechou a porta, anunciando deste modo a toda a aldeia que o assunto, para além de familiar, era reservado.

Saberiam do que seria tratado em tempo oportuno, mas mesmo assim, com os mais velhos à frente, foram-se chegando devagarinho.

Juba de Leão, sentado na sua cadeira, com o cabo de rabo de boi na mão, um adorno na cabeça real, demonstrava que não toleraria faltas de respeito, nem dos seus netos. Era o poder personificado, o soba grande, o sacerdote e só depois o avô, para os receber e resolverem as questões antigas, um conciliábulo restrito. Olhou de soslaio para as armas de Tomás, mas não ficou intimidado, antes pelo contrário, sorriu com um sorriso de desdém.

Não me metes medo com essas tuas armas!...

- Os meus netos são bem vindos, por isso não são preciso armas aqui, que elas sejam entregues a Nehone.

- O meu avô que me autorize a falar, mas ele é militar, como eu, e um militar nunca pode separar-se da sua arma, muito menos entregá-la a um civil. – Disse Nataniel, esperando que a questão ficasse encerrada.

- Que assim seja. Fica! – Concedeu Juba de Leão, para não se colocar em posição de desautorizado. - Sentem-se, vocês dois ali e a Nazamba aqui. – Indicou os lugares.

Nehone continuou de pé, como o garante da verticalidade da conversa que se desenrolaria em breve. Não haveria línguas de camaleão a saltarem inopinadas não se sabe bem donde, para num segundo viscoso enrolarem a desavisada presa até às mandíbulas.

- Já sei que comeram, mesmo assim vamos saudar o nosso encontro com um pouco de comida e bebida primeiro, depois quero falar. – Disse Juba de Leão.

Os pratos e a comida estavam em cima de uma pequena mesa, tapados com outros pratos de alumínio, bem como uma cabaça de aguardente e outra de cerveja de milho, ambas com umas canecas ao lado. Nehone abriu a porta e logo entraram duas mulheres que colocaram a comida no prato, provaram-na e entregaram ao soba. Após este a ter provado igualmente, as mulheres serviram Nehone, Tomás e Nataniel e saíram.

- Minha filha, vais ter que te servir tu própria. – Disse Nehone.

Sem acreditar no que vira e ouvira, mas entendendo o olhar suplicante do marido, Nazamba levantou-se e serviu-se um pouco da comida, voltando ao lugar. Dispensava aquela mistela a que chamam cerveja de milho, feita Deus sabe-se lá com que água, de que cacimba ou poça. Olhou para os homens a comerem e a atirarem os ossos da galinha para dentro de uma tigela feita de meia cabaça. Enquanto o repasto durou, ninguém falou, Tomás sempre de olhos no chão, o que não passou despercebido, quer a Juba de Leão quer a Nehone, que desconhecendo o neto, não consideraram que ele estivesse intimidado, podia até ser que isto fosse o disfarce para lhes abrir a guarda e apanhá-los desprevenidos. Não se esqueciam que já tinham fugido dele duas vezes para manterem a vida, e que a aldeia fora quase toda destruída. Nehone abriu novamente a porta, o que fez recuar a população todavia ainda distante, uns oito ou nove passos e, com um olhar fugidio, fez entrar as mesmas mulheres para levarem o que sobrara para fora. Antes de partirem, trouxeram uma pequena bacia com água onde todos lavaram os dedos, para de seguida agarrarem nas cabaças e serviram a cada um conforme seu desejo, Juba de Leão e Tomás a aguardente, Nehone e Nataniel a cerveja. Nazamba recusou, tirando da bolsa que trouxera uma pequena garrafa de água. Com o mesmo silêncio que entraram, as mulheres abandonaram a sala e Nehone fechou novamente a porta.

Juba de Leão endireitou-se na cadeira, agarrou no cabo de rabo de boi e limpou a boca com as costas das mãos, hábito antigo e mecânico. Chupou os lábios, passou a mão pela barba, notava-se que procurava a palavra inicial que levasse à frase certa, não estava a falar com o povo ou com o conselho de anciãos, os netos eram gente estudada e viajada pelo mundo, não teria que decidir sobre a repartição de uma colheita, ou o arbítrio de um caso de infidelidade, ou a invocação de um conjectura a ver com o mundo invisível.

- Mais uma vez sejam bem-vindos. Despertaste-nos hoje muito cedo – disse Juba de Leão, bem-humorado, a Tomás. – A que vinhas? Sabias que a tua irmã estava cá, era?

Tomás arrastou as botas no chão, colocou as mãos nos joelhos e ergueu os olhos para o avô, fitando-o longamente até este pestanejar. Demonstrou que não estava intimidado, que o confrontaria segundo os caminhos ou descaminhos que desse à conversa, que viera em paz mas que não levaria agravo com ele. Nehone notou o despique e não conseguiu saber se ficara feliz ou não, mas, pelo menos não houvera faísca a incendiar tudo logo de início.

- Não senhor, não sabia, foi uma surpresa muito agradável.

- Estás então feliz desta vez, foi um bom sinal que encontraste na aldeia!

Velho safado, é assim que pensas que vais escapulir?

- Foi de facto, pela primeira vez em muitos anos esta aldeia representou uma alegria na minha vida, graças à presença da minha irmã, só graças a ela.

- Nunca mais pensaste que ias encontrá-la, não é? – Insistiu Juba de Leão.

Mas afinal o que é que ele quer?!...

- Assim é, já a tinha enterrado há muito tempo no meu coração e no meu pensamento.

- Ainda desejas destruir a aldeia e matar o teu avô?

Tomás pensou longamente no que responder. O seu primeiro impulso foi para saltar-lhe logo ao pescoço e pô-lo a estrebuchar, porém os conselhos da irmã retiniram e respirou fundo para ganhar tempo para pensar, algum dia teria que parar e talvez esta fosse a melhor altura. Ou esperar pelo regresso da mãe e todos confrontarem o velho, lavar tudo de uma só fez com o mesmo jacto e impacto. Duvidou que Balanta aguentasse a reabertura de feridas tão profundas e semi enterradas, nunca mais iria sofrer por essas questões, isso ele garantia.

- Não vim para destruir a aldeia nem matar ninguém, estamos em paz a guerra acabou, como deve saber. – Respondeu.

- Então o que viste cá fazer tão pela madrugada e mais ainda pela calada?

Queres mesmo saber, velho caduco?

- Vim para meter medo, para apanhar comida e ir-me embora.

- Meter medo? Meter medo a um velho que não se pode defender?

- Também nós crianças não éramos capazes de nos defender e meteste-nos muito mais do que medo, meteste o inferno nas nossas vidas e na dos nossos pais! – Gritou Tomás, não se contendo e fazendo um esforço enorme para não se erguer.

Nazamba de imediato se levantou e colocou-se por trás do irmão, as mãos em seus ombros, massajando-os, para o acalmar.

O silêncio tornou-se pesado ao ouvir-se unicamente a respiração ofegante de Tomás. Juba de Leão baixou a cabeça e assim se manteve por um largo tempo.

Mas o que mais quer este meu neto maluco?

- O que eu fiz está feito, agora temos que olhar para a frente! – Por fim respondeu, em voz abafada e roufenha.

- Só assim, meu avô? – Perguntou Nazamba, não se importando se lhe era autorizada a palavra ou não.

- Só assim! – Respondeu, autoritário e conclusivo

- Então nada mudou?... O que está feito está feito e nada mais? – Insistiu Nazamba.

- Temos que olhar para a frente, o que morreu, morreu!...

- O avô acha que vamos aceitar essa desculpa esfarrapada? Que passamos todos estes anos em sofrimento e amargura para ouvir agora que o que morreu, morreu? Sabe que o seu genro Marcelo, o meu pai, morreu desgostoso, doente e com a mulher dele, a sua filha Balanta, no coração?

Juba de Leão baixou novamente a cabeça, deixou-a mesmo pender quase até aos joelhos, mas pronto se recompôs. Endireitou o corpo, deu-lhe porte erecto e olhou a neta nos olhos, desabridamente.

- Lamento o que me contas, mas o que te quero dizer é que a água corrida está corrida, só a nova vem pela frente. – Respondeu-lhe serenamente.

- Não continuamos a ser filhos da cobra então? – Perguntou Tomás. – Continuamos mulatos como o éramos em 1975, ou agora já somos pretos... podemos regressar?

- Não, continuam a ser mulatos, mas depois disso as coisas mudaram.

- O que mudou foi o avô, as suas ilusões, as suas pretensões. Hoje está velho, a guerra mostrou-lhe que não manda nada, não é isso? – Disse Nazamba.

- Não se fala assim a um velho, ainda por cima seu avô! – Respondeu Juba de Leão.

- E naquela altura, não era já nosso avô, só agora? O que interessava sermos mulatos ou pretos? – Perguntou Tomás

- Era, sempre fui e serei vosso avô.

Este velho deve estar a pensar que somos parvos!...

- Diga-me uma coisa, já viu cobra acasalar com galinha-do-mato? – Perguntou bruscamente Tomás.

- Que pergunta é essa? – Indagou Juba de Leão, surpreso.

Apanhei-te, velho safado.

- Já viu cobra fazer filho com o jacaré? – Insistiu Tomás.

- Claro que não!...

- Então como somos nós filhos da cobra?

- Mas para quê todas esta confusão?... – Meio gaguejou o velho.

- Explique bem avô, a cobra era a nossa mãe Balanta ou o nosso pai Marcelo?...

Mas o que querem então estas crianças?

- Posso saber o que vocês querem? Cobra é cobra e pronto! – Disse Juba de Leão, agastado.

- Que cobra é cobra, sabemos nós, o que desejamos confirmar é se a cobra era só o branco, o nosso pai. Também filhos da tua filha Balanta, que lhe cedeste voluntariamente e, segundo os mais velhos me falaram, entregaste terrenos e direitos de comércio sobre os outros brancos porque te interessava e te fazia importante junto a eles, foi ou não foi? – Perguntou Tomás.

- Fiz porque era o que tinha que fazer. – Respondeu Juba de Leão.

- Claro, e acasalou sua filha com a cobra… - disse Nazamba.

- Menina, olha como fala, sou teu avô…

- Mas se ela também não fosse cobra, como nasceríamos nós?

- Como nasceriam vocês?... - Não percebeu, Juba de Leão.

- Que saiba, cobra só faz filho com outra cobra, ou não? – Indagou Nazamba, fingindo que o não ouvia.

- O que queres que eu te diga, minha neta? – Disse o velho, baixando, sem querer, os ombros para a posição natural que a idade lhe impunha.

- Afinal nunca houve cobra alguma! Se houve, também tens que ter gerado a cobra que nos gerou, não é? – Gritou Tomás, erguendo-se e dirigindo-se a ele.

- Não é assim que se fala ao seu avô!... – Ripostou, Juba de Leão, vergastando o sibilante enxota moscas na sua direcção, como que o esconjurando para longe.

- Então como é que se fala ao homem que agora diz ser nosso avô, ensina-nos por favor. – Retorquiu Tomás, desejando ser ferino.Juba de Leão começou s sentir-se sufocado e agarrou na cabaça, servindo-se. Tossiu longamente e escarrou para o lado, limpando depois o chão com a sandália. Não cessava de olhar para Nehone como que solicitando uma intervenção sua, uma amostra de solidariedade.

- Sou vosso mais velho e vosso avô. Não entendem que o que passou já passou?

- Eras o famoso Juba de Leão, mas também aparentado dos brancos, o sogro deles, e sentias-te muito honrado certamente. – Voltou à carga, Tomás

- Como ousam dizer-me essas coisas? – Replicou Juba de Leão, tentando levantar-se, sem o conseguir.

Nehone afastou-se sub-reptíciamente para o canto mais escuro do aposento, a fim de observar à vontade, e sem interferir no diálogo e o incómodo evidentes do irmão mais velho. Nunca sonhara, nos seus mais vivos sonhos de vingança, que algum dia pudesse testemunhar o que se passava naquele momento.

- Nessa altura não havia na tua cabeça sonhos de independência, assim a cobra era o preto... Mas logo passou a ser o branco, quando viste a possibilidade de ganhares autoridade, mesmo à custa da tua família, não foi? – Insistiu Tomás, recuando para o seu lugar.

- Avô, por favor responda, precisamos que laves da nossa vida esta sujidade com que nos tingiste. – Pediu Nazamba.

- O que querem ouvir? O que já passou, passou! – Respondeu.

- Não é assim, avô. – Insistiu Nazamba. – E se a guerra recomeçar, vai outra vez repetir-se tudo o que aconteceu? Vão novamente andar a fugir para o mato, com o Tomás ainda com uma raiva maior à sua procura?

- O que vocês querem é que o vosso avô vos peça desculpa? – Perguntou Nehone, por fim e avançando para junto de Juba de Leão.

Já observara tudo o que queria e achava que tinha o dever de mostrar solidariedade para com o soba grande. O seu silêncio tinha uma medida, não a poderia ultrapassar sob pena de ser chamado à tábua depois.

- Acho que seria o mínimo que ele deveria fazer!... – Respondeu Nazamba.

- Não lhe podem exigir isso, já vos respondeu que o que passou, passou. – Disse Nehone.

- Sim tudo já passou, menos nós. Até o nosso pai morreu amargurado, mas sempre com a terra que o adoptara na alma e com a imagem da nossa mãe a comer-lhe o coração. – Fustigou Nazamba, desperta pela memória.

- Tentem ver a idade do nosso avô e a sua maneira de pensar – quis Nataniel evitar que a tensão aumentasse e se perdesse a razão.

- Cunhado, por favor não te metas nisto, fala só de Cuba para onde foste de livre vontade e com todas as honras, a ti ninguém te abandonou, não eras filho da cobra não obstante partilharmos o mesmo avô.

Nazamba foi novamente sentar-se, e juntou o seu banco ao do marido, a quem fez uma festa no braço.

A conversa morreu quando notaram que o velho chorava, silenciosa mas copiosamente, as lágrimas escorriam-lhe pelas faces.

- E agora? – Perguntou após um momento, Nehone?

- Agora nada! – Disse Nazamba. – Agora sabemos que se arrependeu e que nos está a pedir desculpa. Agora entendeu que não somos filhos da cobra e que só poderíamos ser netos dela, porque a cobra foi ele, a sua língua, as suas acções sinuosas e rastejantes. Foi necessário o tempo, foi necessário ver pretos a matar pretos por todos os cantos de Angola e sentir o medo pelo neto, para entender que errara e que percebia cada vez menos o que acontecia á sua volta.

Levantou-se Nazamba e colocou-se de joelhos junto ao avô, segurando-lhe as mãos.

- Nunca deixámos de ser teus, avô. Nossa mãe, que está com o Tomás, é tua filha!

- Vossa mãe está com o Tomás? – Endireitou-se e olhou para a neta.

- Sim avô, está com o Tomás, foi ele que a levou para viver com eles e ela está bem e feliz.

Olhou para o neto e sorriu. Sem vergonha ou compunção, limpou abertamente as lágrimas com o lenço que Nazamba lhe estendera e ergueu-se, com ajuda dela.

- Afinal você é mesmo um grande comandante!

Tomás levantou-se e foi abraçar o velho, que ganhara forças para estender os braços ao neto.

Do canto do olho, Nehone observou a cena e sorriu. Os netos haviam levado a melhor, o velho nunca mais ousaria opor-se fosse ao que fosse em relação a qualquer dos três, o círculo fechara-se ali, longos dezassete anos depois. A paz estava reconstituída naquele ramo da família, paz necessária para que ele pudesse pôr a segunda fase dos seus desígnios em marcha para sentir-se vingado e satisfeito. Tinha o sangue dos antepassados do seu lado, o que teria de ser corrigido sê-lo-ia.

1 comentário:

  1. Foi um prazer ter lido e relido este livro. Senti a contade continuar a ler, mas a narrativa não prossegue, aguardo ancioso, pelos restante dos acontecimentos.

    Hum, também gostei das crónicas em "Memórias da Ilha", sugeri a leitura deste livro na rubrica "Sugestões de Leituras" no Programa Tchilar do canal 2 da TPA, que visa a promoção da literatura angolana.

    Quero ler-te mais estimado Fragata.

    ResponderEliminar