sábado, 2 de janeiro de 2010

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO

FILIPE CORREIA DE SÁ
Jornalista, nascido a 27 de Maio de 1953, no Balombo, Angola, reside em Cabo Verde desde 1985. Neste seu primeiro livro, cujo título busca o nome numa famosa cordilheira de Angola, o autor fala-nos de um reino antigo de vastas planícies e montanhas, no sul do mundo, e narra uma história sob as chamas da fogueira dos Passados, guardada por Todo o Mundo, o renascido.


ESTAMOS JUNTOS NO REINO ANTIGO

Um reino antigo ocupa vastas planícies e montanhas no sul do mundo. As águas brilham entre as matas e os canaviais, tombam, por vezes em cachoeiras prateadas, sobre corpos serenos que se banham nos rios.
Estamos Juntos, de pé, de braços abertos a inspirar da manhã, a cheirar a guano, os aromas na sua temperatura, de palha húmida e estrumada, as lufadas ácidas das gajajeiras a chamar os mercadores do pólen. A casa dele no cimo de um morro debruça-se sobre o rio que passa em baixo onde peixes abundam. O marulhar da água a correr extingue-se no fundo de uma garganta de pedras a cachoeirar numa ravina. O rio continua para longe, recuperando, mais à frente, os braços que estendera para trás dos morros ou nas depressões do caminho.
Era frequente passarem caravanas ali perto, sítio ideal para reconfortar homens e alimárias, num movimento cíclico, regular.
Ao longo do tempo, sementes viajantes no lombo das manadas transumantes, de gnus e palancas, germinavam árvores de vário porte, muitas já então na época de fazer pender dos galhos encurvados frutos sumarentos de apetecer. Manga, fruta-pão, gajaja, pitanga, banana, goiaba, maboque e outros tantos.
A pouca distância da casa de Estamos Juntos, passava uma das rotas das caravanas dos mercadores, rede infindável que circulava por todo reino. O movimento aumentava de dia para dia, naqueles últimos tempos. Alguma coisa se estaria a passar, pensava, embora estivesse longe de saber o que seria e não mostrasse sinais particulares de inquietação pelo que concluía.
Raras pessoas apareciam na sua morada. Não era visível de baixo, protegida por uma camuflagem de árvores, pedras cinzentas enormes e uma série de outros cumes com melhor acesso. Às vezes aproximava-se gente, mas só mesmo quem precisava de alguma coisa. Apenas o acidental reflexo de um utensílio ao Sol, a bruma dos fumos, o som de um animal, o rodopiar das pombas fazia saber da presença de alguém ali a morar. Se carecia de um produto, punha-se a caminho, descia para o acampamento mais próximo. Sabia das notícias desta maneira, enquanto procurava o que pretendia, entre os mercadores. Se não havia num, procurava noutro, assim ia ouvindo. Conversar, conversava pouco, não se demorava muito nas falas, porque não entendia a maior parte das conversas.
Estamos Juntos tinha sido criado ali, naquele cume de morro, pelo avô, que um dia disse: “vou-me embora, tu ficas aqui. Ensinei-te tudo o que um homem precisava para viver, mesmo na solidão. No momento propício, saberás do resto, aquilo que desconheces ou o que esqueceste e esquecerás. Preparei-te para enfrentares a solidão. Agora vais ficar sozinho, eu não volto mais”.
Estamos Juntos perguntou então para onde é que ele ia e por que não voltaria mais. No peito, um aperto subia devagar, um nó na garganta.
O avô disse que tinha chegado a hora dele, de abandonar os terrenos deste mundo. Chegara até ali durante o tempo de o criar. Agora já era gente que podia tratar de si mesmo, que nunca se vira ninguém crescer sozinho, nem os bichos das goiabas; quem os põe lá é mesmo a mãe deles, com tudo preparado. E que não voltaria era uma maneira de dizer, sabe-se lá, lá talvez voltasse, mas não com aquela cara e aquele corpo, seria doutra maneira. E não disse mais porque estava muito cansado e ainda teriam de andar até ao sitio onde se separariam.
Chegaram ao pé da montanha. O avô sentou-se numa entrada muito escura entre duas pedras e disse:
- Ouve então o que te digo. Aquilo que foi até agora e vai acontecendo, já não existe mais, só mesmo no pensamento mais no fundo que a gente guarda sem mexer muito. Como aquela água da cacimba ou da lagoa, onde por vezes te levava, para ficarmos a olhar as coisas a passar à nossa frente e dentro das nossas cabeças. Uma coisa vou repetir: deves sempre guardar bem, tudo quanto te deixei, principalmente o Passado que não podes perder. Se não vais sofrer grandes tragédias. Nele não podes inclinar demais o teu coração, como também não o podes afastar demais.
Fica só com o teu e deixa o dos outros que a eles pertence, só assim pode existir um que seja de toda gente. Como esta pedra que se apoia apenas com um bocadinho do seu corpo nesta outra, sem cair nem para um lado para o outro. Agora vem, vou entregar-te o teu Passado.
Entraram. Lá dentro estava frio e o eco dos seus passos liquefazia-se contra as paredes rochosas sobre as águas transparentes de uma lagoa; a luz do sol enfeixava-se, com muitas cores, através de umas aberturas, por onde o vento silvava.
O avô desembrulhou dos panos um objecto que Estamos Juntos via por vezes lá em casa, parecia um cajado. Feito de argila branca e de madeira de munhango, gravada a fogo, tinha o tamanho de uma perna, do joelho para baixo. Das zonas mais escuras e recuadas da gruta emanava uma luminosidade que dava vontade de acariciar com a mão. O avô tirou um outro, idêntico, mas menos luzente. O rosto dele vencia a escuridão.
- Este aqui, mais brilhante, é o meu Passado, este outro é o teu, que passarás a guardar, é a tua própria vida. Se o perderes, grandes males poderão acontecer, assim como a outras pessoas.
Ao fundo da gruta, na concavidade de uma pedra, ardia um fogo vivo. O avô passou por ele o Passado de Estamos Juntos rolou-o depois em areia branca e em areia negra e também na terra. De seguida, sempre a falar em voz baixa, e a soprar, o mais velho dirigiu-se para os feixes de Sol com vento e girou o Passado entre palmas das mãos, durante alguns momentos. Mergulhou o Passado dele na água. Quando o retirou passou-lhe com a mão várias vezes. Manipulou o outro Passado, até ficar completamente humedecido e submergiu-o, por sua vez, na água da lagoa. Repetiu a operação do Fogo, depois da qual o Passado de Estamos Juntos, já com outro brilho lhe foi entregue.
- Agora podes ir. Trata bem do Passado, muito te ensinará. Trata-o mal também muito te ensinará. Aquele que o perde, aquele que o rouba, aquele o empresta, aquele que não o limpa, aquele que não respeita, muitas dores virá a sofrer.
Estamos Juntos perguntou:
- Avô, quando chegar a minha hora, eu também tenho de entrar aqui?
- Meu filho - disse o mais velho - quando chegar a tua hora vais saber o que fazer. Tudo se fará conforme o que deve ser feito aqui ou noutro lugar, desta ou doutra maneira. Fica bem.
O avô entrou na gruta e Estamos Juntos foi-se embora. Regressou ao cimo do morro e passou a morar sozinho. O tempo foi andando. Nos dias e nas noites servia-se dos ensinamentos depois mais velho.


MBOA, LELA E PENSAL NO SONHO DO REI

Por essa altura, os negócios do reino não estavam em bom estado. O rei procurava saídas para dar conforto ao povo. De todos os lados, surgiam notícias que não lhe agradavam. Gente procurava-o diariamente para se colocar sob sua protecção. De acordo com um costume antigo que obriga o soberano a dar guarida a quem o procura. Acrescentou às suas ocupações habituais aquelas que sem ele não frutificavam.
Os cofres do reino estavam na penúria, o dinheiro desaparecia e o que circulava tinha pouco valor. No mercado, só se comprava a troco de mercadoria. Quase todos se recusavam a aceitar dinheiro. Um pano valia um boi. Os mercadores viam-se e desejavam-se para transportar o produto das suas vendas.
Os campos não produziam por causa da seca. Ir para a guerra não era uma solução, pensava o rei com a maioria dos seus conselheiros. A situação nos reinos vizinhos não era muito melhor. Os mais distantes eram demasiado poderosos para que se atrevessem a ir até lá. A guerrear. A longa caminhada bastaria para dizimar metade dos seus soldados, sem contar as guerras que teriam de travar ao longo dos reinos que fossem atravessando; o estado enfraquecido dos domínios do rei poderia atrair a cobiça de algum vizinho mais ambicioso e aventureiro. Tudo isto preocupava o soberano. Já havia notícias de pilhagens: aldeias subitamente assaltadas e arrasadas por misteriosos bandos; gente e povoados inteiros que desapareciam, sem deixar rasto.
Os adivinhos não conseguiam dar respostas capazes de conduzir o rei a tomar uma decisão acertada, embora lhe dizimassem as capoeiras nas consultas. Era uma ou mais galinhas de cada vez, conforme os casos. Por vezes cabritos e até mesmo bois. O rei meditava nas soluções a adoptar.
Uma noite, das raras noites em que adormeceu, teve um sonho. Vinham três mulheres pela estrada: uma trazia um cajado, a outra um pote de mel e a terceira uma criança de colo que amamentava. A criança crescia e ficava do tamanho da mãe sem sair do colo dela e depois voltava a ser de novo pequenina e até quase desaparecia, voltava acrescer toda num só olho, límpido como só as crianças são capazes, e onde, sonhando, o rei mergulhou seu espírito inquieto. As três mulheres caminhavam à frente dos olhos dele a olhar para lá de si sem saírem de lá. Ao mesmo tempo que via o que elas viam de dentro dos seus olhos, olhava-as de frente, na paisagem. Uma delas parou, as outras duas imitaram-na e ela disse:
- Agora aqui sozinhas podemos soltar as nossas mágoas.
- Como dizer aos nossos homens que nos roubaram? Que vai ser deste menino?
E as três cantaram em coro:
- Nada lhe poderá saciar sua fome?
Fome que não tem mel, nem pau que lhe afugenta.
Roubaram o ventre de sua mãe de onde sai o leite e a vida.
Ai se algum rei nos visse.
Poderia ficar a saber
A dor que nos revela o
momento que nos espera
nas matas do futuro.
Haverá fogo para aquecer nossas esteiras
Nas noites mais frias que hão-de vir?
Mais três mulheres apareceram e depois mais três e mais três. Abriu-se um imenso campo, vasta xana inundada pelo canto delas, três a três. Cada uma com o seu cajado, o seu pote de mel e a sua criança.
Começaram a dançar, a rodar, e numa volta de roda os panos abriram. Dentro deles não tinham nada, era só um vazio. As crianças choravam, as caras delas aproximaram-se e fundiram-se numa só e enorme cara a ocupar o sonho todo, uma grande aparição: de dentro da cara, explodindo em cor e espaço sem som, espalhando-se, saiu um rapaz com cara de sonho. Ajoelhou-se na terra, mergulhou o braço no chão, logo a abrir-se parecia água, e tirou de lá de dentro o rei.
Acordou confundido com a visão mas apesar de toda a preocupação sentia-se bem-disposto. Alguma coisa começava a acontecer. Foi espreitar a noite que era de Lua Cheia. Resistiu ao impulso de acordar a rainha Mboa, para lhe contar o sonho que tivera. Ouvia o som dos animais nocturnos num uníssono de prestações solitárias, de mabecos a cigarras e onças; uma jibóia arrastava-se junto aos currais, julgou ele perceber pelos sons que lhe chegavam através da cinza da noite fria. Mas não desvendou o significado do sonho.
De manhã cedo, no dia seguinte, mandou convocar os adivinhos e conselheiros. Nenhuma das interpretações satisfez o rei.
Depois de muitas horas de elucubrações infrutíferas, um conselheiro pediu a palavra ao rei com uma vénia breve. Deu uma dobra no pano, num gesto quase inconsciente:
-Rei, duvido que os teus adivinhos consigam resolver este enigma tão depressa, assim como nós os teus conselheiros e sábios, que achaste por bem convocar. Tens de reunir todas as aptidões capazes de trazerem a este recinto a resposta necessária, a única verdadeira. Qualquer um de nós se apercebe que o teu sonho se refere aos grandes problemas do reino. Mas para chegarmos às resposta, todos têm de participar.
-- Mas então – disse o rei – estão aqui os adivinhos mais célebres deste reino, todos os meus conselheiros, quem mais falta?
O mais velho prosseguiu:
- Faltam as tuas mulheres que não convocaste. Devo recordar-te que já há alguns dias elas pediram para as receberes, o que te comuniquei em devido tempo, pois tive o privilégio de ser solicitado pela voz da primeira, a nossa rainha Mboa. Ora, se te lembras, não as quiseste receber.
O rei lembrava-se. O conselheiro tinha-lhe transmitido o pedido das mulheres mas no meio das preocupações não encontrou oportunidade para se encontrar com elas e mandou-as esperar.
- Sim, lembro-me. Mas o que é que as mulheres têm a ver com o meu sonho?
- Talvez elas te possam dizer se as escutares.
Ficou a pensar naquilo. Teriam sido as mulheres que lhe mandaram aquele sonho? Tudo era possível, reconheceu para ele próprio. A rainha Mboa era muito bem capaz de organizar uma operação daquelas. Mandou que as mulheres fossem falar com ele. Ordenou a suspensão do Conselho enquanto as aguardavam.
Pensativo, contemplava alheado os conselheiros a conversar. Os seus olhos saltavam indiferentemente pelas diversas figuras espalhadas pelo salão. Há muito tempo que não visitava as suas mulheres. Tinha lá vontade de se meter nos braços da rainha Mboa ou das suas duas outras concubinas jovens e fogosas, que lhe faziam esquecer as tristezas e outras penas, quando o reino estava num estado que caía aos pedaços sobre as suas cabeças? Aliás, ainda bem que há muito tempo tinha decidido dispensar as outras quarenta e sete mulheres do seu harém, precisamente na altura em que as finanças entraram em declínio. Era demais para o orçamento e para a sua resistência. Mas nos seus braços poderia, pensou também naquele momento, encontrar o aconchego para chegar a uma boa ideia.
As mulheres chegaram. À frente, imponente, esbelta, a sacudir as pulseiras e as missangas do seu cabelo com o seu porte de felino cruzado com gazela, a rainha Mboa abria o caminho para as outras duas rainhas, não menos vistosas. Passavam entre o silêncio dos olhos e as vénias dos homens. Em tempo, os reis contentavam-se a descobrir brilhos de incêndio nos olhares dos dignitários, enquanto as mulheres passavam, as favoritas, como a rainha Mboa primeira entre as primeiras, principalmente Muitos chegaram ao ponto de perder literalmente a cabeça, no cepo. Este rei, porém, estava absorto e quase lhe escapava a luz dos olhos amendoados das amantes.
A rainha Mboa saudou-o, todos o saudaram, e disse:
- Temos procurado falar contigo, mas os teus conselheiros disseram que andas muito ocupado e tu mesmo mandaste dizer que esperássemos. Ora, o mesmo que te preocupa, o estado em que estão os assuntos do reino, obriga-nos a falar-te. Por isso te mandamos o sonho que tiveste esta noite.
- Afinal sempre foram vocês. Bem me parecia. Mas esquecem-se que infringiram uma lei que proíbe que se mandem sonhos ao rei, a não ser devidamente autorizadas?
- Sabemos perfeitamente. Quanto a essa lei, espero que não te esqueças que eu, a primeira rainha, tenho o direito de te fazer sonhar, se for essa a única forma de entrar em contacto contigo. Antes de tomar essa decisão consultei os conselheiros, podes confirmar.
O direito era dado à rainha de fazer sonhar o rei, já por várias ocasiões, nos tempos mais remotos, tinha salvo o reino de situações perigosas em tempo de guerra, quando os mensageiros estavam impedidos de furar as linhas inimigas. Através do sonho, as rainhas podiam enviar as mais diversas mensagens.
- Bom, então falem, eu escuto – ordenou o rei.
- A razão da nossa vida – começou a rainha Mboa – é a força da nossa gente. Mas mitos estão a perder essa força. Está a acontecer uma coisa muito grave: há Passados a desaparecer antes do tempo deles s esgotar. E como tu bem sabes quem não em Passado fica sem força.
- Mas como é que os Passados estão a desaparecer?
- Não sabemos senhor. Tanto pode ser algum fenómeno estranho, como pode ser puro roubo!
- Roubo? Mas quem é que se atreveria a roubar os passados? É um crime impensável Ai de quem se atreva…! Estaria a desafiar as leis mais severas que eu guardo!
- Não sabemos quem, mas mandamos investigar e somos levadas a acreditar que se trata de roubo. Aqueles que foram interrogados sobre o desaparecimento dos seus Passados pouco sabem. E muitos não se atrevem a dizer nada, porque o assunto é demasiado grave para as suas vidas. Como disseste, quem perder o Passado está sujeito a grandes e duras provas!
- Isso é verdade! – Disse o rei.
- Nós pensamos numa forma de tentar resolver o assunto, convocando a coragem da nossa gente, pela ambição que todos têm em ti, principalmente quem é mais jovem
A rainha Mboa sentou-se ao lado do rei e virou-se para a assembleia de nobres. As outras duas rainhas, Lela e Pensala, fizeram o mesmo.
O rei redobrou a atenção:
- Chegou o momento de autorizares o casamento da tua filha, a princesa Makemaka. Manda avisar por todos os cantos do reino que quem se considerar com o direito à sua mão poderá candidatar-se. Aquele que casar com ela será feito príncipe e contigo aprenderá a governar os interesses do povo. Porém, há uma condição que se não for cumprida eliminará automaticamente o candidato: é necessário apresentar o respectivo Passado!
- E que vantagens obterei, uma vez que até aqui só eu tenho dado? Primeiro a minha filha e depois o meu reino? Que receberei em troca?
- Não vês, ó rei, que com isso levarás os homens a recuperar os Passados perdidos? Com este desafio dar-lhe-ás um incentivo e nascerá neles a vontade de lutar à luz do dia para devolver ao reino a força que perdeu. Por outro lado, poderás arranjar para a tua filha um marido digno de mais tarde dirigir com ela os destinos deste reino.
O rei prometeu pensar no assunto. Quando as rainhas Mboa, Lela e pensala se retiraram, ficou algum tempo sentado. Os conselheiros foram-se também embora. As primeiras penumbras invadiram o salão. O Sol já descia e virava para a outra banda do hemisfério. Como era possível que o não tivessem avisado sobre o desaparecimento dos Passados? Era um direito sagrado cada um ter o seu. Desde sempre os seus ancestrais, através de leis sábias e justas, tinham procurado proteger cada um no seu direito de o possuir e guardá-lo, prevenindo-os dos perigos resultantes de um tratamento inadequado.
Cantadores e oradores, difundiram pelo reino, desde os tempos mais antigos, as palavras que guardavam histórias e lições para proveito de todos.
A via sugerida pelas mulheres tinha a vantagem de evitar perigos a que o reino poderia estar sujeito, no estado em que se encontrava. Vir lá de fora, de algum reino vizinho, um príncipe, um rei ou um nobre, junto de um monte riquezas, uma aliança a estabelecer pelo casamento, um passo curto para uma vassalagem a curto ou a médio prazo, ou até a anexação pura e simples. Nem precisava de consultar os conselheiros. Mandou imediatamente proceder ás escrituras necessárias para pôr em marcha as suas vontades.
Por decreto real, a todos quantos reunissem as condições exigidas assistia-lhes o direito de se apresentarem como candidatos à mão da princesa Makemaka. Na embala do rei realizar-se-iam as mais diversas provas, para avaliar as qualidades, a coragem, a dignidade, o valor dos candidatos. Um júri seria constituído pelos sábios do reino escolhidos entre os makota e presidido pelo rei e pelas rainha Mboa, Lela e Pensala. À princesa Makemaka caberia a última palavra. O soberano deu ordem para que, três a três, os arautos percorressem as estradas, picadas e caminhos, para levarem a notícia a todos os súbditos. Sem excepção. Quem não fosse portador do seu Passado seria excluído das provas.


ESTAMOS JUNTOS COM OS TRÊS ARAUTOS

Estamos Juntos tinha acabado de recolher água na cacimba, quando viu três homens a subir o carreiro para a casa dele.
Vestiam os trajos dos viajantes e pelo seu aspecto caminhavam há muitos dias. Depois dos cumprimentos, Estamos Juntos convidou-os a lavarem-se e ofereceu-lhes hospitalidade. Disseram que não podiam aceitar nada antes de cumprirem o mandado do rei. Sentaram-se então debaixo de uma mangueira. Convidativas, pendiam frutas dos ramos. Nem sequer olharam.
Um deles deu-lhe a notícia real, que a princesa ia casar e tudo o resto. Um outro perguntou:
- Achas-te com direito à mão da princesa?
- Sim – respondeu Estamos Juntos, sem perceber completamente o que estava a acontecer. As palavras do arauto ainda não tinham chegado lá bem dentro da sua cabeça.
Então, o terceiro arauto perguntou-lhe se ele tinha Passado.
Estamos Juntos ficou um bocado surpreendido com a pergunta mas logo se lembrou de que há muito tempo não lhe punha a vista em cima. Desde que o avô se tinha ido embora
Concebido pelos maiores ceramistas do reino e depois de submetido a rigorosos rituais purificados e consagrados, era entregue pelos sábios e kimbandas a cada chefe de família
Quando um dos membros da comunidade conquistava a sua independência, recebia um, depois de sagrado pela Terra, pela Água, pelo Fogo e pelo Ar.
Estamos Juntos disse que sim, que tinha o Passado lá dentro.
Os arautos olharam para ele em silêncio durante alguns momentos. O primeiro a falar perguntou-lhe como se chamava. Ele disse ‘’Estamos Juntos ”.
- Com quem vives?
Com Ninguém respondeu.
Ninguém era um papagaio que o avô lhe tinha dado, poucos dias antes de ir embora para nunca mais voltar. Foi ele mesmo quem lho deu com esse nome ao dizer “agora ficais sozinho e ninguém te vai ajudar. Por isso mesmo, este papagaio vai-se chamar Ninguém, depois verás”. O avô remeteu-se ao silêncio sobre aquele assunto, sem deixar de falar de outros, depois de dar duas chupadas no cachimbo, sacudindo a brasa, que devolveu á fogueira fazendo-o rolar na palma da mão.
Então os arautos disseram a Estamos Juntos “queremos ver o teu Passado” Estamos Juntos levantou-se, entrou em casa.
Ninguém estava no poleiro ao lado da porta, a coçar o bico com uma pata. Estamos Juntos procurou, procurou, procurou, nada. O Passado não aparecia. Quando saiu vinha de mãos a abanar.
Os arautos perguntaram-lhe:
-Não te lembras onde guardaste o Passado?
-Lembro-me, mas não está lá. Desapareceu.
- Procuraste bem?
- Procurei
Estamos Juntos voltou a procurar. Nada. Os arautos disseram que ficaram ali o tempo que fosse necessário, que não tinham pressa, podiam esperar. Ao fim de muitas buscas inúteis, desistiram Disseram os arautos:
- Estás com um problema. Tens um prazo até ao casamento da princesa para descobrir o que aconteceu ao teu Passado.
E prosseguiram viagem. Se chegaram preocupados, mais preocupados partiram. A situação estava a torna-se muito grave. Alongo da sua missão tinha encontrado muitos casos parecidos dos com o de Estamos Juntos. Não sabiam ainda a que atribuir as verdadeiras causas do desaparecimento dos Passados. Havia a hipótese que apontava para o roubo puro e simples. Mas outras cintilavam suspeitas, nas cabeças em procura. Não era de excluir serem as próprias vítimas as causadoras do desaparecimento dos Passado que, em certas épocas de crise, aumentavam, em muito, o seu valor. Muita gente tentava adquirir vários, para capturar algum ou mais poder, e sempre aparecia quem não se importava de vender o seu. Poder efémeros porque não se pode, indefinidamente, dominar o que é dos outros…


O CAOS NOS QUIMBOS

Muitos dias se passaram desde que o rei mandou os arautos espalharem a notícia de que tinha chegado a hora de casar Makemaka. De todos os cantos do reino recebia informações que anunciavam a partida de inúmeras caravanas rumo à imbala real. Os mensageiros vinham dar testemunho do grande entusiasmo por todo o reino em relação ao casamento da princesa: uns, porque queriam competir na obtenção das suas boas graças, outros, na mira dos festejos que se adivinhavam faustosos.
Porém, algo estranho, muito estranho mesmo, estava a acontecer. Os dias passavam, as pessoas não chegavam. Às que já lá estavam, mercadores de ocasião, peregrinos, viajantes, gente que esperava que se fizesse justiça para os casos que apresentavam, ou doentes que procuravam a cura junto dos melhores quimbandas do reino, pouca gente se juntava, que tivesse directamente a ver com o casamento real.
O rei estava muito preocupado. Tudo apontava para a existência de um mistério: os viajantes desapareciam no percurso para os terreiros do rei. O soberano, depois de ouvir os conselheiros, meditava na solução a adoptar. Precisava de arranjar uma forma de acabar com aquilo.
Estava ele contemplativo, sentado numa rocha sobranceira ao Grande Rio que corria junto aos muros de pedra da embala, quando se aproximou a rainha Mboa, com o seu passo silencioso:
-Meu senhor, grandes preocupações te sobrecarregam o olhar, a cor fugiu da tua testa. Posso ser-te útil de alguma maneira?
- Ah minha rainha, o plano que sugeriste revela-se ainda mais problemático do que a nossa situação.
- Eu sei, e já previa que isso acontecesse. Se alguém anda a roubar os Passados, não podia deixar de aproveitar esta oportunidade para deitar a mão a mais alguns. Esta pode ser a altura de nos aproveitarmos de algum erro que cometa, para acabarmos com os seus crimes.
- Minha rainha, não fosse a tua insistência, a convicção que transmites, não mais pensaria nesta história dos Passados, mas vejo-me obrigado a concordar contigo. Coisas extraordinárias se estão a passar! – Disse o rei contemplando o Grande rio na sua marcha líquida. Depois de uma pausa em que mergulhou profundamente no olhar sereno da mulher, reflectiu, quase que para ele:
-- Mas de que forma agir perante alguém que não se mostra., se nem sequer sabemos o que realmente se passa?
- Meu rei, pode ser que alguém saiba de alguma coisa e não o queira dizer por medo. Talvez um pequeno incentivo da tua parte levem as pessoas a vencerem os receios e a contarem alguém que ajude a desvendar o mistério…
- Muito bem, o que sugeres?
- Sugiro-te que ofereças uma recompensa a quem trouxer informações sobre o que está a acontecer. Dá-lhes qualquer coisa, fuba, mandioca, quissângua, panos, peles, etc. Se for de comer, de beber e de vestir, muita gente virá tentar…
-Não me custa fazê-lo, embora as finanças não estejam nas melhores condições.
- Majestade, as tuas reservas são inacabáveis.
- Não acho, senhora, não acho, mas que mais posso fazer senão tactear no escuro?
O rei mandou proclamar que ofereceria uma recompensa a todo aquele que reunisse informações capazes de ajudar a descobrir o que estava a acontecer no reino e, principalmente, tudo quanto estivesse relacionado com o desaparecimento dos Passados.
Oferecer recompensas em tempo de crise, para as pessoas revelarem coisas que ajudem a saber o que não se sabe, pode despertar, em todo o mundo, uma verdadeira paixão pelas alvíssaras, mais que pela verdade mesma das coisas. O rei sabia disso, mas pensou que talvez valesse a pena correr alguns riscos. Não se admirou, quando as pessoas começaram a aparecer em peso na Casa Real, para trocar informações por fuba, feijões, mandioca, batata-doce, peixe, carne, massango, milho, massambala, que apesar de comida de passarinho, jeito também fazia, para quem apreciava, e outros víveres. Afinal, tratava-se de uma boa saída para a situação crítica de muitos, que começavam a desesperar. Sem trabalho, ou porque a seca devastara os campos e secara as represas ou porque as ameaças dos inimigos e os seus ataques não permitiam o desempenho das tarefas produtivas, havia quem se munisse de algumas informações, um saco e pronto, dava para tapar os pequenos buracos da vida. Gerou-se rapidamente um verdadeiro caos. O Grande Quimbo transformou-se num gigantesco mercado onde a troco de duas ou três denúncias se poderia adquiri peixe, fuba, milho, feijão. Era possível obter uma casa e seu recheio, denunciando uma família inteira de vizinhos que entretanto ficavam presos para averiguações, ou tinham de arrumar as embambas noutro sítio. Ou desapareciam da circulação.
Casos havia também de moradores de casas cobiçadas que eram subitamente desalojados por via de uma denúncia entregue a um colaborador do rei, podia até ser o guarda do portão, que de imediato colocava o denunciante lá morado, graças a uma combina engendrada num ápice, e se possível apoiada por competente ameaça. Não havia tempo a perder.
Era comum os negociadores cruzarem-se em diálogos curtos e eficientes:
- Já trataste da nossa combina?
- Estou a dar o expediente. Mais uns dias e resolve-se.
- Vê se te avias.
O rei mantinha-se na ignorância, o que sempre acontece até um dia.
À custa do rei, muita gente comia e vivia assim, denunciantes e denunciados (classificação com a propriedade associativa, porque não raro era acontecer os denunciantes virarem denunciados, como uma vela de dongo vira de repente para o outro lado graças a uma mudança de vento). O soberano andava verdadeiramente preocupado com o estado de espírito que aqueles seus súbditos revelavam, em que já não havia respeito por ninguém, a começar por cada um por si mesmo. Como uma moléstia que o vento transporta no bojo dos seus transmissores, estendia-se pelo reino o ambiente próprio de uma sociedade desavinda, onde todo o mundo só era bom para todo o mundo,, porque era bom para si, o que seria bastante razoável, não fosse o caso de, na maior parte das vezes, a bondade para si não ser senão a máscara da mais implacável perversidade.
Amantes em discórdia aproveitavam a oportunidade para descarregarem os seus odiados sentimentos reciprocamente. As mulheres fartas dos maridos, idem, estes vice-versa. Havia filhos que denunciavam os pais enquanto estendiam as mãos para os sacos de farinha ou para uma boa cabeça de pungo à espera do respectivo caldo a condizer. Todavia, a falta de amor filial, fraternal e outros, era apenas mais um esquema engendrado mentas mentes imaginosas dos que logo transformavam o assunto do rei em negócio mais rentável e constante. Porque, na realidade, muito amor filial, fraternal e outros que havia é que determinava a elaboração esquemática. Que mais fazer? Na maioria das vezes, rapidamente os acusados eram postos em liberdade por não se lhes reconhecer culpabilidade. À saída dos calabouços recebiam um cesto com as mais diversas vitualhas, uma forma de os compensar dos incómodos causados pela máquina da justiça. Aí, era a vez dos acusadores irem para o calabouço e assim sucessivamente. Formaram-se até associações deste tipo, que iam do tio ao sobrinho, passando por avós e netos. Os conselhos de administração destas empresas tinham sede segura na própria casa do rei, por enquanto alheio a tudo isto. Em suma: o estômago mandava mais do que o coração e este mais do que a cabeça. As famílias desmembravam-se, desta maneira, frente aos olhos impotentes do rei, a confirmar de momento a momento que a maior parte das informações que lhe traziam eram pura inutilidades e invenções. Sementes da discórdia.
O rei, quando abriu os olhos e deu conta do descalabro, tentou acabar com aquilo de uma maneira simples: mandou deter sem direito a recompensa, fosse em que circunstância fosse, todos aqueles que acusassem outros, sem fundamento. Os detidos eram então obrigados a apanhar sacos de sumaúma em dias de ventania.

In “Tala Mugongo”, Spleen Edições, 1995

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