sexta-feira, 28 de agosto de 2009

FUNDAÇÃO UANHENGA XITU


A Comissão Instaladora da Fundação Uanhenga Xitu, levou a cabo no dia 26 de Agosto corrente (2009), um Colóquio de Reconhecimento a Agostinho Mendes de Carvalho, homem de referência na vida angolana, em múltiplas facetas. O Colóquio, que cobriu os vários aspectos do "Homem" Mendes de Carvalho, teve três painéis,Uanhenga Xitu o Escritor, Uanhenga Xitu e a Cidadania e Uanhenga Xitu e a Política, com oradores da craveira de Luandino Vieira, Manuel Rui, José Carlos Venâncio, Cornélio Caley (Timóteo Ulika), Rui Mingas, Jaka Jamba, Marcolino Moco, Beto Van Dúnem, entre outros.

Faço referência a este evento porque, em 1975, tive a honra de colocar em guião cinematográfico o que seria a primeira longa metragem nacional, a maravilhosa estória que é "Kahitu". Por via das "forças ocultas", o guião "perdeu-se" e, como não tinha feito cópia (quão jovens e inocentes éramos!) e a Internet ainda era coisa de um futuro longínquo, o projecto ficou por aí, com uma frustração que ainda perdura.

Anos mais tarde, para me sentir devidamente vingado, agarrei em "Manana" e coloquei-a em forma adaptada para teatro que, desta vez já com as benzeduras tradicionais, foi apresentada pela primeira vez no Cine Teatro Nacional, quando Uanhenga Xitu completou 80 anos, tendo sido, de igual modo, adaptada para a televisão e apresentada ao público várias vezes.

Deixo aqui o endereço da Fundação, para quem pretenda ser de utilidade para com este património angolano que se chama Uahenga Xitu, de seu nome próprio Agostinho Mendes de Carvalho

www.uanhengaxitu.org

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Centenário do nascimento de Óscar Ribas


CONSERVAÇÃO DE MEMÓRIAS

A obra literária de Óscar Ribas, como tradição nacional.

Foi-me solicitado pelo Ministério da Cultura que apresentasse uma comunicação sob o tema “Conservação de Memórias – a obra literária de Óscar Ribas, como tradição nacional, o que me colocou enormes dificuldades por razões de força maior, no tempo que me iria permitir elaborar um trabalho mais condigno deste magno evento. Impossível de não dar atendimento ao amável convite que me fora endereçado, optei por uma trabalho mais ligeiro sobre a obra deste grande intelectual, considerado com toda a justiça e justeza o precursor ou o fundador da ficção literária moderna angolana,
Óscar Ribas nasceu em Luanda a 17 de Agosto de 1909, filho de um português nativo da Guarda, Arnaldo Gonçalves Ribas e de Maria da Conceição Bento Faria, natural de Luanda, que, como escreveu Luís Kandjimbo, “era o protótipo das senhoras africanas do outro tempo, mantendo vivas as fontes originais da sua própria sabedoria”. Aliás, a influência da figura mãe foi sempre marcante na vida do escritor.
Fez os estudos primários e secundários em Luanda e, após uma estada em Portugal, regressou a Angola, tendo-se empregado na Direcção dos Serviços de Fazenda e Contabilidade. Foi todavia, em Benguela onde se revelam os primeiros sinais de uma cegueira aos 22 anos, e que aos 36 se consumou em definitiva.
Não obstante, escreveu ao longo dos anos, com ajuda de familiares, sobretudo de um irmão, para quem ditava.
Poder-se-á estabelecer o início da sua fase de escritor com as duas novelas publicadas em 1927 e em 1929, “Nuvens que passam”, e “Resgate de uma falta”, nomeadamente. Seguiram-se “Flores e Espinhos” em 1948, “Uanga” em 1950 e “Ecos da Minha Terra” em 1952.
Será, a partir desta década, que o escritor revela a sua veia para os diversos aspectos da literatura oral das populações da área de Luanda, consolidada numa vasta obra da qual emergem “Ilundu – Espíritos e Ritos Angolanos (1958)”; “Missosso”, obra de três volumes, (1961, 1962, 1964)”; “Alimentação Regional Angolana (1965)”. “Izomba – Associativismo e Recreio (1965)”; “Sunguilando – Contos Tradicionais Angolanos (1967)”; “Kilandukilu – Contos e Instantâneos (1973)”; “Tudo isto aconteceu – Romance autobiográfico (1975)”; “Cultuando as Musas – Poesia (1992)” e “Dicionário de Regionalismos Angolanos”.
Óscar Ribas foi distinguido com vários prémios e títulos honoríficos, o último em 2000, o Prémio Nacional de Literatura e Artes de Angola.
Foi pois no contexto do quotidiano da vida africana urbana, sobretudo a partir da década de 50, que se revela como o colector laborioso dos temas ligados à literatura oral africana, à mística, à religião tradicional e à filosofia das pessoas da área de Luanda.
É nesta época que vê merecidamente aumentada a sua reputação, com a publicação dos romances “Uanga (Feitiço), por si chamado de folclórico, e de “Ecos da Minha Terra”, trabalhos literários que, com o registo de usos e costumes, contribuíram de maneira indelével para a etnografia angolana.
Quando o escritor afirma que “Uanga” é um romance folclórico, (…) “quis declarar que ele era feito a partir dessa observação, desse estudo, dessa vivência. Por isso folclore e romanesco puderam fundir-se e puderam resultar neste estranho documento que é “Uanga”, por certo uma das obras mais válidas – literária, artística e sociologicamente – da cultura angolana dos nossos dias, a dar continuidade a um trabalho de documentação que a antecedeu”. (1)
Pesquisador infatigável das várias manifestações da psicologia das populações negras, Óscar Ribas sempre soube que a memória viva dos povos africanos reside principalmente nos mais velhos das sociedades tradicionais, já que são eles os seus depositários, ou seja, os fieis guardadores e transmissores das tradições milenares, estabelecendo assim as pontes entre o passado e o presente.
Em “Uanga”, publicado em 1951, Óscar Ribas remete-nos para os fins do Século XIX em Luanda, num trama em que a vida diária dos luandenses da época é ricamente traduzida.
Neste seu romance, o escritor revela-nos o tema do ressentimento e da vingança, onde o amor de Joaquim por Catarina é ameaçado por António Sebastião, ambaquista de artes e ofícios que, pelo seu estatuto social, se vem a sentir ofendido quando instado a explicar-se perante todos, já que tinha mandado chorar as pessoas ao lhe ser solicitado para ler uma carta não sabendo ele, afinal, ler. Despeitado e rancoroso, usa as crendices e o feitiço para pôr cobro a esse amor e relação.
Numa entrevista concedida a Luís Kandjimbo, na TPA, no programa “Leituras”, em 2000, Óscar Ribas ao referir-se a Catarina, diz ter buscado o padrão virtuoso da mesma em sua própria mãe, Dona Maria da Conceição Bento Faria.
“A Catarina, que é uma das principais protagonistas, eu fui mais ou menos pela minha mãe, tem as características da minha mãe, a Catarina. E fui obrigado, vá, permita-me esta expressão, a matá-la, enfim, quando leio isso vêm-me as lágrimas aos olhos, só para poder depois descrever as práticas resultantes de um falecimento”. Fim de citação.
Não deixa de ser comovente, neste caso particular, sentir que o escritor tem que sacrificar sua heroína a fim de que, como etnólogo, o valor descritivo de um falecimento tradicional sirva de referência grafada para o futuro.
Um outro protagonista, é o ambaquista António Sebastião. Para as novas gerações, impõe-se certamente a definição de ambaquista, o que fazemos pelo punho do próprio Óscar Ribas:
“O ambaquista… pela superioridade intelectual, que o impõe à consideração de seus irmãos de raça, é preferido pelos sobas para o cargo de conselheiro. Então ele, sempre munido de papel, caneta e tinta (antigamente supridos com folha seca de bananeira, pedaço aguçado de madeira e infusão de folhas de tomateiro), redige as petições às autoridades superiores, no que é useiro e vezeiro. Para melhor se definir a astúcia de que é dotado, basta dizer-se que, certa vez, desejando um grupo de ambaquistas endereçar uma representação ao chefe da Colónia contra determinada autoridade, assinaram em círculo, isto para evitar que a responsabilidade recaísse ao primeiro!!!” Um dos exemplos mais acabados de ambaquismo e ambaquista, encontramos nos discursos do famoso Mestre Tamoda, criado genialmente por Uahenga Xitu..
Voltando à entrevista conduzida por Luís Kandjimbo, Óscar Ribas quando indagado por este sobre o ambaquista António Sebastião, que recorrera
ao feitiço por ter sido humilhado e transformado em motivo de chacota e de zombaria ao ser descoberto que afinal não sabia ler, o responde: “(…) do António Sebastião, sim. Bem, a explicação que deu… chorem… ele quando disse “chorem” foi, como mais tarde ele explicou, ele sendo um homem de prestígio lá na sua terra, no seu meio, homem com dinheiro, com propriedades e não sabe ler. “Chorem”, chorem por eu não saber ler”. E claro isso foi interpretado de maneira diferente. A Catarina, quando ouviu “chorem, supôs que o homem, o Joaquim tivesse morrido”.
É em Luanda que decorre toda a trama desta obra que… “nos relata as vicissitudes sentimentais de um negro e de uma negra que se amam, se casam, se vêem separados pelas intrigas do meio, se vêem novamente juntos, até à morte de Catarina após um parto a que não são estranhos os sortilégios, os ódios e as rivalidades… A história de Joaquim e de Catarina é uma história só na aparência igual ás outras histórias de amor”. (2)
Com uma preocupação permanente voltada para a recolta etnológica, Óscar Ribas arrecada uma vasta e variada gama de contos tradicionais, provérbios, adivinhas, canções, receitas gastronómicas, etc., o que nos lega um extenso monumento patrimonial e espiritual.
Em “Ecos da Minha Terra – Dramas Angolanos”, outra obra de referência, primeiramente publicada em 1952, o autor alerta o seu público que “os contos, ou antes, dramas, que enfeixam esta obra, não reproduzem produto de imaginação, mas episódios transportados de vida real. Portanto, além de recreativos, sobrepõem-se pela matéria folclórica que proporcionam aos estudiosos”.
Nesta obra, onde sobressai o conto “A Praga”, distinguido em 1952 com o Prémio Margaret Wrong do “International Committee on Christian Literature for Africa”, desenrola-se perante nós uma maravilhosa representação dos referidos dramas sociais, aqueles vividas por gente humana, que ama, que sofre, que vive no dia a dia as contingências da existência.
Num belo conto, a ganância, a quebra às regras de convivência social acaba por ser punida, quando Musoko, ao encontrar duzentos e dez escudos, uma pequena fortuna, não os devolve à legítima dona que, prontamente alarmara o bairro com o seu clamor:
- Quem apanhou duzentos e dez escudos? Quem os apanhou que os entregue, fui eu que perdi! Digam! Quem apanhou esse dinheiro? Vocês que trabalham, que conhecem o sacrifício dos pobres, não escondam o que procuro! São duzentos e dez escudos que perdi! Quem os apanhou? Dou o olho de ver (Alvíssaras)! Quem tem o coração duro, dura será a sepultura! Ouçam, eu bem grito para todos!”
Quando Musoko, atenta ao chorar da vizinha, Donana, e à praga nele contido, menciona que vai devolver o dinheiro, de imediato a sua tia-avó se opõe:
- Qual entregar! Roubaste o dinheiro? Não o apanhaste na rua? Portanto, é teu! Para que ter medo?
Entretanto, “o aviso já passado por toda a cidade, agora percorre novamente os mesmos lugares, não em dolência de queixume. Mas em aspereza de revoltada ameaça:
-Gritei pelo dinheiro que perdi, ninguém só abriu o seu coração! Ouçam, ouçam bem, não digam amanhã que sou feiticeira: vou cubar (Amaldiçoar)! Estão a ouvir? Vou cubar! Vejam lá, não se queixem depois!... Quem levar esse morto, morre também! Quem lhe cortar o cabelo, morre também! Quem lhe cortar as unhas, morre também!
Mesmo assim, Musoko mais uma vez se submete às tias mais velhas que dizem que a vizinha Donana pode ir cubar à vontade, isso era só conversa para meter medo. Todavia Donana desloca-se a terras do Ambriz. “Aí, segundo a fama, acharia quimbandas abalizados na arte do cubamento. Pelos jimbambi (Sortilégio exercido pela acção da tempestade), era num ápice que se despachava o patife. Ai, era, era”.
Não é desprevenido que o leitor será apanhado quanto ao desenlace natural do drama. Adivinha-se a caminho, a imagem tradicional da morte, começando sua colheita com Musoko, para depois arrebatar Donana, e não mais parar a ceifa pródiga, recolhendo aparentemente de maneira inexplicável e indiscriminada homens e mulheres por Luanda fora, no cumprimento da praga rogada. “No fatalismo do esconjuro, inexoravelmente se cumpria a vingança: “Quem lavar este morto, morre também! Quem lhe cortar as unhas, morre também! Quem lhe cortar o cabelo, morre também! Quem o vestir, morre também! Quem for ao seu óbito, morre também! Morre também quem disser aiué!”
Face ao imprevisto e ao desconhecido, os médicos contrapunham ser uma epidemia, uma maleita qualquer que a todos dizimava indistintamente. Mas o povo não acreditava, sabia que a razão da mortandade se encontrava nos jimbambi, nesses sortilégios desencadeados através das fúrias da natureza nos ventos, nas chuvas e nos raios que tudo e todos reduzem numa furor sem precedentes.
Diz-nos Óscar Ribas, que o episódio que originou o conto lhe foi relatado, em sua vivência geral, por Rita Manuel e pormenorizado, em certos passos, por outras informantes suas.
Muito mais poderia aqui ser dito sobre Óscar Ribas e sua tão vasta, quanto importante obra, que emerge cada dia mais como padrão imorredouro da nossa memória colectiva, mas o tempo nunca seria em demasia, sempre faltaria.
Não tivesse sido ele, não se teria hoje este património cultural, espiritual e humano incomensurável. Bem-haja o dia em que nasceu.
Muito Obrigado

(1 e 2) Dr. Amândio César, em Diário Popular (Lisboa, 07-06-1970)

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO (TÍTULO E CAPA PROVISÓRIOS)



O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO


Quando me veio a ideia de elaborar a presente antologia, de imediato se me colocou a grandeza e delicadeza da tarefa face à vasta gama de escritores nacionais, e sobre o que eu poderia antever como imaginário, fantástico, real e ou irreal, entre muitas outras perspectivas, numa sociedade em que as fronteiras entre o mundo visível e aquele invisivel sempre estiveram tão intimamente ligadas.

Face à oralidade das sociedades africanas, da qual Angola não teria como escapar, este universo de ambiguidade não poderia deixar de ter residência visível nas diversas obras dos escritores angolanos que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram férteis na produção de textos em que diversos mundos se interligavam com acontecimentos estranhos, acontecimentos que com muita frequência fugiam ao entendimento de serem ou não reais perante à percepção do aceitável e ou do credivel.

Óscar Ribas, um dos mais conceituados nomes da etnografia nacional, nascido em 1909 e já falecido, autor de vasta obra em que recolheu a extremamente valiosa literatura oral africana na zona de Luanda, afirmara que os contos ordinariamente reflectem aspectos da vida real. Neles figuram as mais variadas personagens: homens, animais, monstros, divindades, almas. Se por vezes, a acção decorre entre elementos da mesma espécie, outras no entanto desenrolam-se misteriosamnete, numa participação de seres diferentes.

Confrontei-me, deste modo, com a questão do fantástico, algo que não pode ser explicado via racionalidade, e com as possibilidades do verosimil versus o inverosimil, o real e o sonho, o natural e o sobrenatural. O que procurar, o que e como inserir? Seria o fantástico, o estranho, o maravilhoso e a fantasia contidos na panóplia de obras de escritores angolanos a mesma coisa? Quedar-me-ia unicamente com o texto, vamos chamá-lo por contraposição adulto, ou igualmente com o tradicional, o juvenil e o infantil? Na oralidade africana, contar, o sunguilar, é parte intrinseca da vida. É às noites, sob o agasalhar dos fogos, que as tradições, os usos e costumes são propagados de geração em geração, através dos contos, das estórias, das adivinhas, dos provérbios. Contar, relatar, gravar na memória colectiva é uma das acções mais antigas da história da humanidade, reflectidas em testemunho nas grutas espalhadas pelo mundo inteiro.

Acho que me preocupei mais com os aspectos do estranho, do maravilhoso, talvez mesmo até do insólito, na recolha que levei a cabo, deixando o fantástico maioritariamente para a literatura tradicional e para a literartura infantil, narrativas em que o narrador ou o escritor mais se preocupa com a mensagem, com a valorização moral e com um fim que transmita uma postura considerada de funcional na sociedade.

Tzvetan Todorov, um filosófo e linguista búlgaro desde 1963 a viver em Paris, no seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”, estabelece normas a respeito do fantástico na literatura, diferenciando entre o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Segundo ele, em um mundo que é o nosso, que conhecemos (infira-se ocidental e moderno), sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então essa realidade está regida por leis que desconhecemos… O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um género vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.

Não irei referir nesta apresentação o que me levou a incluir um e não outro escritor, até porque a linha divisória não me permitiu estabelecer fronteiras entre o estranho, o maravilhoso sempre existindo um subgénero transitivo entre eles. Segundo Todorov, seja como for,não é possível excluir de uma análise do fantástico, o maravilhoso e o estranho, géneros aos quais se sobrepõe. Acho que os contos e os excertos de textos mais largos que me serviram de base, englobam-se largamente no objectivo a que me propuz.

Fragata de Morais
Coordenador

domingo, 2 de agosto de 2009

A PRECE DOS MAL AMADOS - CAPÍTULO IV


CAPÍTULO QUATRO
O FUSCO DO ESPELHO

Vá, Gravoche. Rouba uma estrela do céu.
Quando o sol fechar os olhos, tu roubas a mais bela.

(António de Almeida Santos)

Eram seis e meia da manhã quando despertou do sono meio dormido, ao som da voz da hospedeira a anunciar que em breve momentos aterrariam no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, em Luanda. Atirou com a manta para o chão e, sem levar as costas da cadeira à vertical, olhou pela janela, ansiosa. A companheira de viagem, notou o nervosismo de Nazamba e sorriu. Apresentara-se como Lucinda do Nascimento ao chocarem uma com a outra no free shop do aeroporto de Lisboa e pronto entabularam conversa, numa empatia mútua. Lucinda insistira que se o avião da nacional fosse vazio, solicitaria permissão ao comandante, seu primo, para que viesse para a primeira classe fazer-lhe companhia.
- Tem medo da aterrissagem?
- Não, é que já não venho a Angola há muito tempo.
- Há muitos anos?
- Sim, há quinze. Saí daqui miúda, em 75.
- Então vai encontrar um outro país, espero que esteja preparada.
Estar preparada? Claro que estou, seja o que Deus quiser...
Não fazia a mínima ideia do que iria encontrar, o que ouvira e vira nas televisões não servia de padrão, sabia que a informação portuguesa sempre fora contra os donos do poder em Angola, a pérola da coroa ainda não tinha sido tragada, infelizmente tanto de um lado quanto do outro, por razões certamente diferentes mas que concorriam para esse relacionamento de amor-ódio mútuo. Vira os angolanos a regalarem-se com o bom bacalhau, como se se deleitassem com um prato de funji, observara-os, curiosa, a verterem o tinto para os buchos sempre ressequidos, tanto o das tascas quanto o do mais caro nos restaurantes. Vira-os, muitos anos depois, afirmarem serem do Benfica, do Sporting ou de qualquer outro clube, com tanta paixão quanta a dos portugueses, que não faziam a mínima ideia do nome de um único clube angolano.
Preparada, claro que tinha que estar, só que não sabia como, não era um penteado que se produzia diante um espelho, risco ao lado, ao centro ou à esquerda, cabelo curto ou à afro. Pensara que sim, estava preparada para o que desse e viesse, agora mal se controlava, sentia vontade de vomitar, tão aflita se via.
Tenho que ser forte, tenho que ser forte!
- É que não sei se está efectivamente alguém à minha espera.
- Não tem família? – perguntou espantada Lucinda.
- A minha mãe vive no interior e nem sabe que estou de regresso, nunca mais nos contactámos, perdemo-nos uma da outra, com a guerra. Espero que o meu irmão esteja no aeroporto e que me reconheça, eu que nem dele me lembro... – disse a meia-verdade.
- E se não estiver, o que vai fazer?
- Tenho uns dois telefones de amigos de amigos meus em Portugal, estão avisados. Assim que desembarcar, telefono-lhes, pois não conheço Luanda
Lucinda riu e afagou-lhe a mão para a tranquilizar.
Coitada, pensa que vai encontrar telefones a funcionar no aeroporto, ou táxis.
- Deixe lá, não se preocupe. Se não tiver ninguém à sua espera vem comigo e depois logo se verá. Temos quartos suficientes em casa, poderá utilizar um deles – disse, sem arrogância.
Nazamba olhou para ela e sentiu-se grata, afinal a hospitalidade da sua terra ainda existia.
Lembrava-se de como os estranhos eram recebidos na casa paterna e tinha uma vaga mas grata recordação dos caixeiros viajantes, homens de carrinhas carregadas de bugiganga diversa, tecidos, e sabe-se lá mais o quê, sempre faladores, sempre bons acompanhantes para o lazer e o beber. Perante olhares atónitos e de expectativa, sobretudo os das mulheres, não só atiravam para cima do tampo do balcão das lojas as quinquilharias e os tecidos garridos, os fatos de material duvidoso que só mesmo o isolamento do mato fazia comprar, como igualmente desembrulhavam todas as notícias de outros lugares, de outras gentes, e transcreviam cena por cena os filmes que haviam visto quando passavam em locais a que chegava o cinema ambulante. Era gente que remetia ocasionalmente os matuenses para um outro mundo, o da ilusão, o do fantástico, o dos sonhos onde viagens inconcebíveis acabavam por ter lugar logo ali e então, ou no recôndito dos lençóis à hora que precedia o adormecer, com o pensamento em divagações de aventura e portento.
- Não quero dar maçada alguma. Se não estiver ninguém à minha espera, telefono para me virem apanhar.
- Não faz a mínima ideia como Angola se encontra. Já disse, vem connosco e depois logo se verá. Saiu daqui criança e volta quinze anos depois, não senhora, não a deixaria aqui sozinha.
- Mas o seu marido, a sua família?...
- Não se preocupe com isso, o meu marido é boa pessoa... estamos de acordo?
- Olhe D. Lucinda, este gesto nunca lho poderei agradecer, não sabe o que representa para mim.
- Posso imaginar, esta guerra tem sido um drama para todos nós. Vai ficar lá em casa até encontrar a sua família, depois vemos isso com mais calma, agora prepare-se que daqui a pouco estamos em terra.
Nazamba sentiu-se falha de palavras. Considerou bom augúrio ter recebido esta prova de humanidade. Achou que os desígnios da sorte indicavam os rumos que sua vida levaria, depois dos longos anos de afastamento. Pela primeira vez em muitos anos, teve vontade de chorar, o que achou ser bom sinal, a flor há muito murcha reganhava a seiva original e dava mostras de quer desabrochar. Implorou a Deus que assim fosse, que lhe desse a almejada paz e o reencontro do seu eu abandonado na aldeia do avô há séculos, assim lhe parecia.
- O meu marido é oficial superior das forças armadas e médico, ainda não lhe tinha dito – disse Lucinda.
- É uma profissão muito nobre, não como eu, que tirei direito comercial só para ficar rica – disse Nazamba, rindo.
- Bem vai precisar, sobretudo se se encontrar sozinha. Já tem trabalho?
- Creio que sim, fiz uns contactos em Lisboa com uma companhia petrolífera americana, implantada aqui em Angola.
- Aterramos! Agora vamos passar outras duas horas à espera da bagagem.
- Duas horas? A D. Lucinda deve estar a brincar comigo...
- Olhe Nazamba, vamos chegar a um acordo, esse D. Lucinda faz-me sentir uma pessoa muito mais velha e afinal somos quase da mesma idade...
- Mas não posso tratá-la por Lucinda. – disse, com sinceridade.
- Pode sim, chama-me Lucinda e eu chamo-a Nazamba, não se fala mais nisso.
Nazamba olhou pela janela e viu um amontoado de casas que se estendia pela rede que delimitava o aeroporto. Não se lembrava se elas já lá estavam quando partira, em 1975, certamente que não. Ao sair do avião, sentiu com agrado o calor e um cheiro que lhe pareceu estranho. Seria esse o odor do continente, dos trópicos? Ao entrar para a área da recolha das bagagens, o seu entusiasmo esmorecera um pouco. Começou por não encontrar carros de mão para a bagagem, o ar condicionado, se é que existia, não funcionava e as pessoas apinhavam-se à volta do tapete rolante, muitas com crianças a tiracolo que berravam sufocadas pelo calor e desconforto.
- Não desanime, amiga, não obstante este cartão de visita inicial, as coisas não estão assim tão más.
Como resposta Nazamba sorriu. Seu ar atarantado fez Lucinda rir por sua vez.
- Tenho pena de não ter uma máquina de filmar. Daqui a uns tempos iria rir da sua cara de espanto. Não era nada disto o que esperava, não é?
- Se quer que lhe seja franca, não. Bem me tinham dito, todavia achava que havia exagero. Mas enfim, estou de volta e isso é o que conta, logo me habituarei.
- Trouxe-a de propósito por aqui para se ambientar e porque é a única que pode reconhecer as suas malas, poderíamos ter saído pelo outro lado.
Que outro lado, por quantos lados se sai aqui?
- Não tem importância, de facto fico logo a entrar na vida luandense.
- Olhe lá vem o guarda do meu marido.
Guarda, meus Deus, as pessoas têm que andar com guarda?...
- Bom dia, dona, fez boa viagem? O chefe como não lhe viu no outro lado mandou verificar aqui. – disse ele.
- Olá, como estás? Vai dizer que estamos aqui e que venha.
O guarda partiu e pronto se remeteram a verificar a chegada das malas, atiradas de qualquer modo para cima do tapete rolante. Muitas chocavam umas contra as outras e acabavam por rolar para fora, sem que ninguém se preocupasse em endireitá-las ou em remetê-las para o tapete. Pacotes abertos ou rotos, esventrados de propósito ou por acidente, revelavam parte das suas entranhas e assim que alguém visse o que lhe pertencia, partia para o tapete aos empurrões, sem um desculpe, um com licença, mas sim com a férrea vontade de não permitir que a bagagem partisse para mais uma volta, como se de lá não mais voltasse.
- O meu marido, já o vejo. – disse Lucinda, num largo sorriso, momentos após.
Nazamba viu um senhor alto, fardado, barba bem aparada, a andar para elas. Ao detectar a mulher sorriu e acelerou o passo. Abraçaram-se fugazmente e beijaram-se nas faces.
- Então, como correu a viagem? Mas o que te deu para saíres por aqui?
- Correu bem. Quero-te apresentar a Nazamba, saiu de Angola em 1975 e regressa agora. Como não tem família em Luanda, convidei-a para ficar connosco até a sua situação estar resolvida, fiz bem, não fiz, foi por isso que saímos por aqui.
- Tadeu do Nascimento, muito prazer e seja bem-vinda. - respondeu, estendendo-lhe a mão, que ela apertou com afeição.
- Já disse à sua esposa que nunca haverá gratidão suficiente para vos retribuir o gesto, tinham-me dito que aqui já ninguém ajudava ninguém. Sinto-me feliz por constatar que assim não é.
- De facto a nossa sociedade está mais egoísta, os males são tantos que as pessoas viram-se para si próprias, mas continuamos a ser basicamente hospitaleiros.
- Olha filho, está ali uma das minhas malas – disse Lucinda, apontando.
O general chamou o guarda que a retirou do tapete rolante, e, depois, acenou para alguém que o cumprimentava à distância.
Momentos mais tarde, instalados num espaçoso 4x4, o fresco do ar condicionado e a massajem suave da música de Cesárea Évora, pronto fizeram olvidar as agruras do desembarque.
- A sua família vive em que parte de Angola? – perguntou Tadeu.
- Tenho um irmão que deveria estar à minha espera – mentiu novamente- Talvez até tenha estado, mas como não o conheço e ele tão pouco se deve recordar de mim... A minha mãe vive no interior, fui com o meu pai para Portugal em 1975, poucas são as lembranças que tenho dela.
- Quando souber a localidade exacta, iremos lá, isto é, caso se possa, como sabe há muitas zonas ocupadas pelos bandidos.
- Eu sei qual é a localidade, está nos meus documentos, nasci em num sítio que se chamava Ualali ou Ualili, não sei bem, creio que no centro sul do país. Era lá que o meu pai tinha o seu comércio.
Sentiu que não tinha mais informações a dar sobre a família, de resto o pai já falecera, a questão estava encerrada, quanto ao irmão nada dele sabia, talvez até fosse uns dos bandidos a que o general se referira, talvez não, talvez tivesse morrido trucidado por uma mina, talvez vivesse num país vizinho, talvez nem nunca tivesse existido.
O meu irmão... sempre um grande talvez, desde aquele dia!
A mãe, se estivesse viva, descobri-la-ia nem que para isso removesse montanhas e cavasse abismos, ela era o útero da vida, sua progenitora e a esposa do homem que, por vias diferentes, as abandonara a ambas.
- Se não se importam não gostaria de falar da minha família agora, é-me um pouco doloroso, e a vossa ajuda, a vossa bondade, ainda o torna mais. Queiram-me perdoar.
O silêncio tornou-se pesado. De facto não tinham pensado que ela pudesse estar atribulada com o regresso, quinze anos após. Nem sabiam em que condições partira, naquele fatídico ano em que as famílias angolanas se dividiram, ao que parecia, para todo o sempre. Sentiram-se egoístas e falhos de tacto.
- Quem lhe pede perdão somos nós – disse Lucinda – às vezes não vemos o que está à nossa frente. Olhe, amanhã como é sábado vamos à praia, temos uma casa no Musulu e pelo que vejo está a precisar de sol, até parece que tem hepatite – riu, segurando-lhe a mão.
- Bem estou a precisar, isso é verdade, os da minha cor quando vivem na Europa ficam amarelos. – riu igualmente, agradecida com o gesto.
- Não só, até nós, tornamo-nos meio acastanhados - disse Lucinda.
- Afinal é a culpa de tudo é o sol – brincou Tadeu.
Ao chegarem, Nazamba admirou-se com o tamanho da casa e com os guardas postados à entrada. Pensou que o general deveria ser pessoa muito importante e que tivera sorte, os espíritos dos antepassados por certo que velavam por si, lembrava-se das palavras últimas da mãe ao entrar na carrinha que a conduzia à capital da província.
Filha lá onde vais, nunca esqueças os teus para que eles nunca te esqueçam.
Salvo o avô e a mãe, por razões diferentes, esquecera-os a todos, nem sabia quantos tios e primos tinha, recordava-se vagamente de um irmão mais novo do seu avô que era quem mais mandava logo a seguir a ele, e pouco mais. As imagens da casa comercial do pai e tudo a elas ligadas tinham sido enuviadas. Marcelo, seu pai, morrera dois anos antes, amargurado, prematuramente envelhecido, feito um farrapo humano de tanto beber, sempre em choros pelo passado, pela mulher cuja imagem lhe roía a mente, pela filha ausente e que só espaçadamente lhe dava notícias curtas e secas por cartas que seriam não mais do que bilhetes lacónicos e despidos de qualquer sentimento ou emoção, por vezes parecendo um relatório de contas a ser prestado duas ou três vezes ao ano, nos aniversário dele, no Natal e por este ou aquele motivo mais premente. Teria que varrer a poeira do tempo e do sofrimento, olhar para si em catarse, reganhar o gosto pleno da vida, curar e reconstruir as raízes afectadas e, sem mágoas, dar descanso e paz à alma e memória do pai, anichá-lo em seu coração com o carinho e amor que lhe pertenciam antes da saída precipitada para Portugal, perdoar-lhe para que pudesse repousar em Paz, longe da sua Angola. Sabia que enquanto assim não procedesse, não seria feliz, viveria nos remorsos das atitudes e actos passados que apenas pressentira não serem correctos e justos, pela ocasional crise de consciência que geravam. Desejava antes de tudo voltar a Ualali, enfrentar o avô, que teria agora uns oitenta anos, e encontrar sua mãe, que teria uns sessenta, rezava fervorosamente para que tanto ele quanto ela estivessem vivos, todavia sabia que primeiramente teria que arranjar um bom trabalho, casa e integrar-se na nova sociedade que descobria e esperar que o local estivesse livre da guerra.
Entraram, para uma espaçosa sala de visitas e Nazamba estranhou não encontrar crianças.
- E os filhos, estão na escola? – perguntou, não contendo a curiosidade.
- Só a mais nova, deve estar a chegar daqui a um pouco. Os outros dois estão a estudar em Londres. Vamos tomar um refresco e comer qualquer coisa que depois mostro-lhe o seu quarto, deve estar exausta – retorquiu Lucinda.
- De facto estou, pouco dormi no avião, encontrava-me muito excitada e um bom sono vai fazer maravilhas, mas só depois de um pequeno mata-bicho. – disse, tentando agradar com o uso antiquado da palavra.
- Olhe, - disse Lucinda sorrindo – aqui quase que não mais se usa esse termo. Durma o que quiser, não se preocupe connosco, quando precisar de qualquer coisa é só chamar pela empregada, a Zulmira. Vou esperar a minha filha e pode ser que quando desperte tenhamos ido ver uns familiares, ligue a televisão e esteja à vontade, tem aí livros e revistas.
Após o pequeno almoço, sorriu ao recordar a palavra mata-bicho e o uso de que dela fizera, dirigiu-se ao quarto e sentou-se na cama, olhar perdido na lonjura do futuro que temia, reflectido nebulosamente na sua imagem no espelho do armário. Que lhes deveria contar, até que ponto abrir a alma e purgar-se de um passado que teria que definitivamente deixar para trás? Escutou a campainha soar melódica na sala. Entreabriu a porta do quarto e espreitou para baixo, pela fresta, curiosa. Ouviu a voz infantil, excitada.
- A mamã já chegou, a mamã já chegou!
- Já, está no quarto à espera da menina. – disse Zulmira
Ao perceber a criança subir as escadas em correria, Nazamba fechou a porta, sentindo uma angústia antiga ao recordar o aborto que fizera dois anos após a saída da casa do pai. Tentou afastar o pensamento com um gesto involuntário sem contudo o conseguir e, como que invocado, à sua frente se materializou Malaquias, ao empurrá-la sem querer, numa das ruas de Lisboa.
- Não vê para onde vai? –perguntara, meio irritada.
- Queira-me desculpar, mas quem não vê para onde vai é a menina – respondeu-lhe, numa voz rouca e olhando-a descaradamente nos olhos.
A resposta suave e o tom da voz atrapalharam-na. Sondou aqueles olhos negros como a noite, o bigode farto e tratado e notou que, pela sua tez escura, o homem seria, talvez, eslavo ou cigano.
- Desculpe, ia distraída, já agora, por acaso sabe onde fica o restaurante Las Noches?
- Las Noches? Sim, se quiser posso levá-la, não fica muito distante –ofereceu, solícito.
- Se não for incómodo, é que não conheço Lisboa.
- Não será incómodo nenhum, terei muito prazer. Como se chama?
- Nazamba, muito prazer – estendeu-lhe a mão.
- Malaquias, ser servidor, – retorquiu, começando a andar- que nome lindo, de onde vem?
- Sou natural de Angola, mas estou cá há muitos anos, vivia com o meu pai e a minha tia na Beira Alta.
- E o que quer no Las Noches?
- Vou em resposta a um anúncio, preciso urgentemente de trabalhar.
- Por acaso até conheço bem o dono – disse Malaquias, mais conhecido por O Cigano, olhando-a intencionalmente.
- A sério? – respondeu Nazamba, mal contendo a expectativa.
Tivesse ela pensado nas probabilidades de alguém se materializar abruptamente na sua vida, talvez tivesse desconfiado dos acontecimentos fortuitos, aparentemente predestinados. Teria seguido seu caminho, descrente do tamanho do óbolo que a coincidência lhe colocava aos pés, feito tapete aflorado de pétalas fragrantes. Um muito obrigado, desejava só saber qual a direcção, não, não se incomode, muito obrigado e passe bem, teria sido mais que suficiente para que sua vida fosse outra, mas como nunca se sabe o que o futuro reserva em termos de arbítrio, acaba-se por optar pelo que parece mais correcto, o mais lógico, o mais à mão de semear, mesmo que sejam ventos e tempestades, pedregulhos ou abismos. Só quando neles se tropeça ou se cai em cascatas de tardias consequências, se revelam as demais possibilidades, todas elas certamente sofríveis de igual e possível catástrofe. A isso os cínicos ou moralistas chamam de crescer, de aprender na escola da vida, de se formar na universidade onde os únicos cursos são os da adversidade, da iniquidade, da perversidade dos furúnculos psicológicos que amadurecem, enfim, a simbólica pele ainda por curtir.
- Que idade tem a menina?
- Sou maior e vacinada, se é isso que quer saber. Não está a brincar comigo, pois não?
- Por amor de Deus, claro que não. Mas deixe que lhe faça um pedido, já que não tem ninguém cá em Lisboa, permite-me que seja o seu protector ?
Nazamba olhou para ele e não soube o que responder. A cidade grande amedrontava-a com o movimento e vida a que não estava habituada, o pequeno quarto da pensão velha e escura em que se hospedava desde que chegara, recordava-lhe a dispensa em que vivera por longos tempos. A voz rouca e suave bem como os modos gentis de Malaquias eram um conforto, mas desconfiava das suas intenções.
- Mal nos conhecemos, nem sei bem quem é.
- Teremos muito tempo, não se preocupe com isso. O principal agora é o emprego. Onde vive?
- Na pensão Sol Dourado, não muito longe daqui.
- A pensão da D. Carminda, no beco dos Moleiros?
- Sim – respondeu Nazamba, olhando para ele admirada - Mas o senhor conhece toda a gente?
- Bastante... sou agente privado de relações públicas. Tem aí consigo o anúncio?
Agente privado de relações públicas, deveria ter-se perguntado o que é isso, nunca antes ouvi falar dessa função, trabalha para si mesmo, tem escritório, tem telefone ou fax, ai não tem?, que relações públicas são essas, muito limitadas, não é? Mas o título soou grandioso e de prestígio, alguém que trabalha para si próprio é sempre um empreendedor, uma pessoa de recursos, habituada à luta e à labuta, a prova é que era conhecido e a todos conhecia, oferecera-se para a ajudar, para quê rejeitar o que lhe era colocado a seus pés? Nazamba procurou na carteira e entregou-lho. Pararam, enquanto ele lia, um olho no anúncio, o outro a estudá-la de soslaio, medindo as coxas, os seios.
- Muito bem, já que simpatizei consigo, vou ajudá-la.
- Não brinque, preciso seriamente do trabalho.
- Acha-me capaz de tal? Por favor, confie em mim, o emprego é seu, o dono do Las Noches deve-me muitos favores.
Outra oportunidade para ter indagado que favores, que favores tantos deve o dono de um restaurante a um agente privado de relações públicas, que tenha que sucumbir aos seus desejos, às suas vontades e caprichos?
O bater suave na porta despertou-a das recordações. Ajeitou o cabelo e levantou-se para a abrir. Era a criança.
- A minha mãe falou em si e pediu-me para a vir cumprimentar. Eu sou a Isabel.
- Olá Isabel, eu sou a Nazamba, entra.
- Não, obrigada. Vim só conhecê-la, eu e a mãe vamos sair, depois falamos quando eu regressar, está?
- Está bem Isabel, eu vou aproveitar para descansar um pouco. Até logo minha querida, és uma menina muito bonita e educada.
Menina bonita e educada, o feto que havia deixado para trás numa clínica sombria de bairro periférico lisboeta, seria de menina? Meus Deus – pensou - mas porque me vêm agora à mente estes pensamentos? Deitou-se de costas sobre a cama, cobrindo com o braço os olhos, talvez para não recair no devaneio das recordações e suspirou fundo.
- Não lhe prometera que o emprego era seu? – indagou Malaquias, semanas mais tarde quando celebravam a ocasião, dançando numa obscura boate do Bairro Alto.
- Tem sido muito bondoso comigo, isso é verdade.
- Nazamba, gostaria que nos tratássemos por tu, afinal fica mal tanto formalismo para duas pessoas que se vêm todo os dias desde que se conheceram. Já somos muito mais íntimos, não acha?
Ao fazer a afirmação, Malaquias apertou-a suavemente contra si - Não acha? – sussurrou-lhe ao ouvido.
- Sempre duvidei dos homens, são fracos e egoístas..
- Mas porquê, o que lhe puderam ter feito, na sua idade?
- Não interessa, mantenho o que disse.
- Também me inclui nessa desconfiança? – fingiu-se zangado.
Era evidente que o incluía, e daí te-lo afastado meio abrupta, fingindo que tropeçara no seu pé. Recordando que lhe devia o emprego, aproximou-se um pouco mais, porém evitando o contacto físico dos corpos e como pedido de desculpa, olhou para ele e sorriu.
- Ainda não decidi, parece-me ser sincero.
- Pode crer que sou- disse Malaquias a rir
- Está bem, vou fingir que acredito em si.
- Em ti! –corrigiu Malaquias.
Não teve a certeza se foram emoções ou simples reflexos de sobrevivência que lhe tolheram a mente. Quis fugir, percebia-se suja ao ter que jogar com as emoções e não poder utilizar as palavras livre e espontaneamente como sempre fizera, irreverente. Deu conta que ao alforriar-se da liberdade paterna começara a escravizar-se na sua. Os actos tinham agora consequência e relevância, o jogo era o de ousar e progredir ou o do acanhar e soçobrar e, pela natureza indómita que a caracterizava, jamais aceitaria um outro afundar.
- Está bom, em ti. Se queres saber, contigo sinto-me mais à vontade...
- Não faço mais do que o meu dever de te proteger...
- Não é bem assim, em geral ninguém faz nada sem moeda de troca.
O raio da bichinha parece matreira, mas é muito inocente. Não perdes por esperar!
- Se é isso o que pensas de mim... – disse, fingindo amuo.
- Sabes muito bem que não é. – respondeu-lhe, bem humorada.
Aqui, igualmente tivera uma oportunidade de rebate, de ser assertiva e afirmar que assim era, não havia mão nenhuma que fosse estendida sem que a outra se retraísse, era a lei dos iguais ou dos complementos. Preferiu mentir, face ao amanhã.
Malaquias aproveitou para lhe compor uma mecha do cabelo, num gesto de pretensa naturalidade e afabilidade.
- Sempre foste assim, desconfiada?
- Aprendi que se deve confiar desconfiando.
Dançaram durante um tempo sem se falarem, cada um envolto na sequência da conversa, ele contente por ir levando a água ao seu moinho, ela cada minuto confiando na desconfiança, ia-se entregando, sem muita vontade, ao relacionamento que se formava.
- Teremos que pensar noutro sítio para viveres - disse Malaquias, para mudar de assunto.
- Porquê?
- Um pequeno apartamento, mais perto do teu trabalho.
- Não me fales nesse trabalho, tenho tanto medo – disse Nazamba.
- Medo? Medo de quê?
O que farei, meu Deus? Ter que ser agarrada nos braços de qualquer um, cheire ou não a cerveja ou tabaco e dançar, dançar e sabe-se lá o que mais quererão
- Ficar ali sentada à espera de que alguém me convide para dançar.
- Logo te habituarás, isso não é nada. O dinheiro é bom, e como queres estudar é mais fácil, tens o dia livre.
- Tenho medo e não sou bonita, ninguém vai querer dançar comigo.
- Quem te tem andado a mentir? És linda, és jovem e morena, o que interessa, e pelo que vejo, até danças bem.
- Achas?
- Já te faltei à verdade? Vais ser um sucesso, garanto-te.
Sucesso? Sucesso em que? Mas enquanto não arranjar outra coisa vou ter mesmo que aguentar.
- Mas se quiserem aproveitar-se de mim?- perguntou.
- Não te preocupes, estarei sempre atento. Vais habituar-te, verás. Não és a primeira.
Não sou a primeira, o que quererá ele dizer com isso? Nazamba, olha o teu caminho, cuidado!...
- Não sou a primeira, quer dizer que já houve outras? – retorquiu, afastando-o.
- Não foi isso o que quis dizer – corrigiu, lesto, Malaquias - Já houve mais jovens na tua situação, certamente que não és a primeira – brincou, feliz pelo que considerou ser ciúme.
- E as outras, o que lhes aconteceu?
- As outras? Porque te preocupas com as outras, todas elas se iniciaram como tu, não tens que recear. Não tentes é evidenciar-te.
- Eu? Deus me guarde, se soubesses o medo com que estou, é a primeira vez que me vejo numa situação destas...
Malaquias “O Cigano”, em raro momento de fraqueza, aproximou-a um pouco mais e encostou a face na dela, para logo cair em si, descontente com a fragilidade momentânea que poderia ser nefasta para o negócio.
Estás farto de saber que estas pretas têm feitiço!...
- Nada tens a recear, serei um pouco o teu pai.
- Não me fales no meu pai, preciso de uma amigo e não de um pai – respondeu, azeda.
Pressentiu que dera um passo no vazio. Ao testemunhar pela primeira vez a aversão de Nazamba ao progenitor, ficou pensativo, poderia usar o sentimento para proveito próprio.
- Nunca mais o farei, desculpa-me.
- Quem te pede desculpa sou eu, não tinhas como saber.
- Obrigado, afinal és uma menina bonita e educada – disse - dando-lhe um pequeno belisco no rosto.
Nazamba, reconheceu como fora levada ao passado ao dizer a Isabel que era uma menina bonita e educada. Riu, a mente tinha maneiras peculiares de conectar situações, aparentemente díspares e longínquas umas das outras.
Por fim, gasta de sentimentos, deixou-se adormecer numa imensa floresta em que uma única e gigantesca árvore, despida de toda a verdura, deixava pender sobre ela esqueléticos galhos secos, mãos aduncas e carcomidas de um qualquer feiticeiro milenar, em gesto de ameaça. Horrorizada, descobriu talhados no tronco da árvore dois enormes lábios que, aos poucos, se transformaram na boca e, por fim no rosto e corpo do pai da sua infância. Quis fugir e seus passos apenas esboçaram a pretensão do gesto, tolhidos numa tracção incompreensível, enquanto ele se aproximava, temível, para a agarrar e sustê-la em seus braços. Sentiu-se desfalecer num grito de dor e prazer no momento em que a erecção paterna penetrava-lhe o sexo. Ao erguer os olhos marejados de lágrimas para o pai, reconheceu Malaquias, sorridente.
De um pulo sentou-se na cama. Transpirava profusamente. Assustada, assim permaneceu por longos momentos como que anestesiada, incapaz de apreender o que se passava, envolta numa névoa de ânsia e culpa, tentando entender como projectara para Malaquias, ainda que em sonho, os sentimentos recalcados, pelo pai? A lembrança do homem que lhe dera vida e amor primaveril, Marcelo, foi maior que o muro protector erigido no aeroporto português à sua chegada, quando tomou consciência que, também lá, era filha da cobra. Chorou copiosamente com o rosto embrenhado na almofada para que não fosse ouvido o pranto convulso, alimentado pela proximidade incerta do futuro e do que ele lhe abriria, lhe destaparia e lhe revelaria, até que ponto desbarataria as aparentes certezas armazenadas em si e de conveniências desconexas. O cansaço da viagem acabou por adormecê-la novamente.
O som da melodia de um rádio, ou da televisão, despertou-a. Olhou para o relógio, dormira por horas, seis da tarde.
Meu Deus que vergonha!
Levantou-se e dirigiu-se ao quarto de banho, para dar conta que nem a mala tinha aberto.
E se eu dormisse até amanhã de manhã para não aborrecer ninguém, será que me levarão a mal?
Decidiu que tomaria banho, vestir-se-ia e desceria, jantaria com a família. Ligou o rádio da mesa-de-cabeceira e, pouco tempo após, ouviu um leve bater na porta.
- Posso entrar Nazamba, sou a Isabel.
- Entra minha querida, ainda bem que vieste.
Isabel entrou, sorridente e foi-se logo sentando.
- Pensei que ias dormir até amanhã, estavas cansada não é?
- Olha, estava exausta. Ainda não estou habituada e são muitas emoções novas para mim.
- A mãe contou-me que saíste daqui menina e só voltaste agora.
- É verdade minha querida, quando saí daqui teria uns dois ou três anos mais do que tu, já vês.
- E não tens família?
Nazamba pensou por um momento se estariam a usar a filha para tentar saber sobre ela, mas pronto descartou a ideia, não nunca fariam tal coisa, tinham-na acolhido sem mais perguntas e acreditado na sua palavra. Nada exigiria deles tal comportamento.
- Tenho, Isabel, só que não sei onde se encontram ou se estão vivos. Deixei cá a minha mãe, um irmão que também não sei nada dele e tenho um monte de tios e tias.
- E quando vais vê-los?
- Ainda não sei. Primeiro terei que encontrar trabalho e depois uma casa para morar, só então irei procurar a minha mãe.
- E porque não ficas aqui a viver connosco?
- Os teus pais estão a ser muito gentis comigo porque ainda não conheço nada nem ninguém, mas em breve terei que me ir embora.
- Quando arranjares a tua casa posso vir visitar-te, não posso?
- Claro que sim, e sabes, quando eu tiver casa, os meus primeiros convidados serão vocês.
- Ainda bem, eu quero ser tua amiga.
- E já o és. Fazes-me um favor, não saias daí enquanto eu tomo um banho e me preparo, está?
- Não, vou sair porque tenho que fazer o trabalho da escola, vim só para te cumprimentar.
- Está bem minha querida, até daqui a um pouco. Sabes onde posso encontrar um ferro de engomar?
Isabel apontou para o vasto guarda-fatos, incrustado na parede.
- Aí dentro costuma ter uma tábua e o ferro, este é o quarto das visitas. –respondeu, levantando-se e saindo.
Nazamba suspirou e sorriu, enquanto se dirigia para uma das suas malas. Pouco depois, debaixo do chuveiro, deixou a água escorrer em abundância, como que desejando lavar todas as recordações de um passado não muito distante que agora lhe aflorava ao coração e à mente. Tentou compreender o sonho com o progenitor, demasiado evidente para se rever Electra, em rivalidade com a mãe ausente e quase desconhecida. Sentiu nojo e sem querer, as mãos esfregaram com virilidade a vagina, a espuma abundante do gel de banho nos dedos longos penetrando pelas entranhas de um mundo escuro de culpa e fragilidade, aquele da Eva cristã, embebido e oculto em toda a mulher. Fora efectivamente Malaquias quem a deflorara e, numa fatídica repetição a abandonara tal como o pai abandonara sua mãe, ainda que por razões diferentes. Quando ela anunciou a gravidez, Malaquias o Cigano, logo ordenou que a tirasse, o filho ser-lhe-ia prejudicial para as suas actividades públicas, anunciou. Nazamba não teve muita escolha, trabalhadora e estudante universitária. Se o pai e a tia soubessem, o que seria? Quase nunca lhes escrevia, quanto menos deles soubesse melhor para si, bloqueara-os quase por completo, a não ser quando uma reminiscência de culpa aflorava, sobretudo pelo aniversário dele, e então lá escrevia o que podia, duas três linhas, espero que estejam bem e de saúde, pai, muitos e muitos mais anos de vida é o que deseja esta tua filha, a tia está boa, beijinhos da Nazamba, pronto, selava e metia no correio para logo pensar que esquecera a existência deles, figuras dos confins do consciente.
- Malaquias, não, ainda não... – fora com esta frase que repelira brandamente a primeira investida do Cigano, uns três meses após o começo do trabalho no Las Noches.
- Mas meu amor, já vivemos praticamente juntos...
- Eu sei, mas acho que ainda não chegou o momento
- Não me amas? – perguntou Malaquias fingindo amuo.
A eterna prova máxima exigida pelo homem como atestado de garantia de uma relação acalentada, caso seja ele a determiná-la. E não é questão de semântica, este não me amas indagado entre arrufos de satisfação ou amuos de condenação dirigida, deverá significar um amor incondicional com passagem única de ida, nada de meias-voltas ou voltas completas, o ego másculo não se sente preparado para tanto. A gaiola masculina está, há milénios, programada para armazenar a virgindade, a constância, a fidelidade feminina, e só libertá-las quando para sua conveniência e uso pessoais. A mulher tem que demonstrar mas não exigir amor, tem que dar mas não solicitar apego, tem que saber estar próxima e disponível mas alheia, funcionando sob controlo remoto de dois únicos botões, um que diz sexo e o outro, conveniências imediatas ou de curto prazo.
- Não se trata de te amar ou não, mas sim do que acho que devo fazer. Vocês homens nunca percebem nada, sempre apressados e insensíveis.
- Mas se não for hoje será amanhã, o que muda pois, se o sentimento já existe?
- Não é o tipo de vida que vou continuar a ter, quero acabar os meus estudos.
- Claro que deves estudar, não serei eu que to impedirei, mas não vejo porque não aprofundarmos a relação, já vivemos praticamente como um casal...
- São talvez os receios....
- Receios, receios de quê?
- Olha, para exemplo, não quero que sejas tu a pagar-me a renda, assim como não estou preparada que me digam para onde devo ir ou com quem falar, como tu o fazes a toda a hora.
Malaquias vestiu a camisa que antes atirara para cima da cadeira no pequeno quarto de dormir do exíguo apartamento que arrendara para Nazamba. Percebeu que tinha que recuar, criar maior confiança, estava familiarizado com os sintomas demonstrados. As asas, que haviam começado a ser encurtadas imperceptivelmente, na claustrofobia consequente criada, ganhavam coragem e força para tentar um esvoaçar. Havia pois que reconsiderar se não seria melhor deixá-las crescer para que se espatifasse desnorteada contra o primeiro muro no voo experimental, permitindo-lhe um eu bem te avisara, não me quiseste escutar e olha agora, pedes ajuda, afinal parece que eu sempre tinha razão. Em outras palavras, valorizar-se ante a derrapagem inevitável, ou até preparada, de Nazamba.
- Mas se assim procedo é para te proteger...
- Não duvido das tuas intenções, mas não quero que sejas o meu pai que me diz se posso fumar ou não, se chego a esta hora ou aquela. Sou suficientemente crescida para saber cuidar de mim mesma, por pouco que seja.
- Está bem, está bem, não há pressa – disse, em tom mais conciliatório.
- Quando chegar o momento, não será necessário pedires – concedeu Nazamba.
A afirmação excitou Malaquias que voltou ao leito onde Nazamba, de sutiã e calcinhas, ainda se encontrava. Debruçou-se sobre ela e abraçou-a, beijando-a com ardor. Ela correspondeu, mas acabou por afastá-lo com um ligeiro empurrão, em jeito de gracejo quando pressentiu que os fogos do Cigano se reacendiam.
- Não recomeces outra vez, vá, veste-te e vamos sair para comer qualquer coisa.
Retirou-se de cima dela, ajeitou-lhe o sutiã e deitou-se a seu lado. Olhou-a profundo nos olhos e sorriu, feliz. A promessa estava feita, ultrapassara a meta por antecipação, agora era só aguardar com paciência. Quando a desvirginasse, seria toda outra, entregue e meiga, conciliatória e, sobretudo contribuinte pelo amor que julgaria sentir pelo facto de ter que justificar a entrega do que mais valioso pensava possuir, a virgindade, esse pedaço de membrana rompido por variadíssimos motivos e razões e à qual as mulheres tanto valor atribuem, dos mais nobres aos mais obscuros e sinistros. Tivesse Eva tido esses preconceitos, ainda estaríamos a amargar no paraíso. Após a perda dos três, e ainda hoje não se sabe porque só três, porque não perdem as mulheres os nove, os dezoito e meio, os vinte e cinco? Após o desfloramento, após o extirpar dos tampos, após o destruir da inocência, após o bazanço do cabaço, ou após qualquer outro nome que inventem, Nazamba revelar-se-ia incondicional, isso Malaquias sabia através da experiência.
- Vossa Excelência manda! – respondeu, levantando-se e abotoando a camisa.
- Está, já conheço a música. Aguarda enquanto tomo um banho rápido.
Sorriu ao recordar a ingenuidade dos seus dezassete ou dezoito anos. Atirou com a esponja ensopada para o lado e ergueu o rosto ao jacto da água morna. Relaxada a tensão, decidiu que o sonho não teria representado mais do que uma apreensão qualquer, o novo desflorar da sua existência na terra materna, daí a imagem do homem que a deflorara se revestir da do pai. Fechou a água, saiu da banheira e cantarolou enquanto se enxugava. Sentiu-se apta para a vida que começava.
Prepara-te Nazamba, a tua vida está apenas agora a iniciar, todo o resto foi paisagem.
Arranjou-se de maneira elegante, porém sem querer dar a impressão de sofisticação propositada, e desceu para a sala de visitas.
Tadeu, que se encontrava a ler uma revista, ergue-se.
- Pelo que vejo o descanso fez-lhe bem, parece outra pessoa.
- Nada como um repouso merecido, não estou habituada a viajar de avião e sobretudo à noite. – sentou-se onde ele sugeriu com um pequeno gesto.
- Sei que viu pouco, mas as suas primeiras impressões? - disse, para fazer conversa.
- Francamente, ainda é muito cedo, todavia o sentimento de estar de volta é bom.
- Acho que o mais difícil já passou, verá que tudo se irá recompor.
- Espero que assim seja, força de vontade não me falta...
Lucinda e Isabel entraram, e dirigiram-se a Nazamba que pronto se levantou e a elas se dirigiu.
- Refrescada?... Deve estar com uma fome enorme, não?...
- Nem tanto, creio que a emoção tirou-me o apetite. E a Lucinda, como está?
- Já fiz as visitas que se impunham, isto de regressar de férias é uma andança, levar os presentes e pedidos aos familiares....
- E tu Isabelinha, estás contente por ter a mãe de volta, não é? – perguntou Nazamba.
- Já disse à mamã que as próximas férias têm que ser quando eu também tiver as minhas.
Perturbada ao ouvir planos familiares, sentiu-se intrusa e não soube o que dizer.
- Amanhã vou começar a procurar emprego – meio gaguejou.
- Para além de amanhã ser sábado, não tenha pressa – disse Tadeu- e olhe que aqui não funciona assim.
- Deixe isso por conta do meu marido, ambiente-se um pouco mais.
- Não me sinto bem nesta situação...
- Não se preocupe, quando menos esperar tem trabalho, casa própria... – disse Lucinda, puxando-a para o sofá, onde se sentaram as duas e Isabel.
- Não vai beber nada? – perguntou Tadeu.
- Acho que vou tomar um martini com gelo, obrigado.
Tadeu dirigiu-se ao bar e preparou as bebidas, um whisky para si, um gin tónico para a esposa e o martini para Nazamba. Numas taças de vidro verteu castanha de cajú, jinguba torrada e salgadinhos variados. Deu um sumo à filha, e sentou-se, uma vez todos servidos.
- Já tem uma ideia por onde começar? – perguntou o general.
- Para ser franca, não...
- Já alguma vez trabalhou?
- Não, acabei os estudos e foi preparar-me para regressar a Angola. Achei que os desenvolvimentos políticos apontam para uma solução do problema da África austral, que esta guerra tem que acabar um dia e que quando isso acontecesse eu queria estar cá.
- De facto assim parece, a independência da Namíbia, o fim do apartheid, tudo indica que mais tarde ou mais cedo a paz chegará.
- Espero que não comecem já a falar de política. – disse Lucinda.
- Não, não!... – balbuciou Nazamba, meio atrapalhada.
- Olhe que aqui só se fala de política, até a minha filha Isabel, somos um país de politizados, não é, Tadeu?
- A Lucinda está a brincar consigo, mas de facto somos um país de políticos, começa logo nas escolas com a OPA.
- OPA, desculpem a minha ignorância mais o que é isso?
- É uma organização infantil partidária, assim como existe uma outra juvenil e outra ainda para a mulher.
- Pois, esqueci-me que isto aqui é um regime comunista, não é? Pelo menos é o que o meu pai dizia.
Tadeu não soube o que responder, de facto não desejava enveredar para uma conversa política, por outro lado receava melindrar a sua hóspede, desconhecia como interiorizara a saída intempestiva do pai e dela própria e por último porque achava que o regime em momento algum fora comunista.
- Olhe Nazamba, se quer que lhe diga a verdade, não sei como lhe responder, uma coisa foi o que se pretendia como política de Estado, outra coisa foi a vida quotidiana e as pretensões mais íntimas das pessoas, o seu desejo ao acesso a uma vida melhor e cada vez mais desafogada.
- Queiram-me perdoar, acabei de chegar e não saberia do que estaria verdadeiramente a falar.
Lucinda esboçou um sorriso da satisfação.
- Pois mudemos de assunto. E quanto ao seu trabalho o Tadeu cuidará disso.
- Se fosse por mim, era já hoje. – disse Nazamba a sorrir.
- Ofereça-se uns dias de repouso. Na próxima semana resolvo isso, está prometido. – respondeu Tadeu.
- Estamos combinados para a ida ao Musulu amanhã? – perguntou Lucinda.
- Sim papá, vamos, não é Nazamba? – perguntou Isabel, ansiosa.
- Por mim nada mais desejo, até porque será a minha primeira vez.
- Vai gostar, irá ver, o Musulo é um paraíso e toda a gente de bem tem lá uma casa. – disse Lucinda.
- Eu gosto porque tenho lá muitos amigos. – fez eco, Isabel.
- Combinado então, Musulu seja. – disse Lucinda.
- No Musulo há bichos?
- Bichos? – indagou, admirada, Isabel
- Sim sei lá, cobras, macacos!...
- Talvez, mas que eu saiba não. Porquê? – quis saber Tadeu.
- Só por perguntar, recordo-me das cobras e dos macacos na minha infância.
- Há muitos caranguejos, kitetas e mabangas, vamos apanhá-las juntas. – ofereceu-se Isabel.
Tadeu desatou a rir, enquanto retirava umas castanhas de caju, que levou à boca. Lucinda e Nazamba olharam para ele, inquiridoras.
- Lembrei-me agora de um episódio interessante quando a Nazamba falou de macacos?
- Conta, papá, o que foi?
- Lá vem ele com mais uma das suas estórias da guerrilha!... – disse Lucinda, jocosa.
- Se queres saber, até adivinhaste!
- Da guerrilha, então o Tadeu foi guerrilheiro? – perguntou Nazamba.
- Já foi há tanto tempo, que às vezes até duvido.
- Mas o que foi, conta papá?
- Calma, filha. Já vou contar.
Olharam para ele com interesse, não obstante Lucinda já ter ouvido muitas.
Estórias da guerrilha eram sempre motivo de alegria, tanto para quem as contava quanto para quem escutava. Representavam momentos vividos numa era que agora, no início da década de noventa, parecia romântica e mística. Os que as contavam, reviviam os factos com emoção e até saudade e colocavam tal intensidade no relato que às vezes se transfiguravam, percebendo-se que o mundo de então nada tinha a ver com o momento do presente, egoísta, centrado e limitado. Este novo mundo perdera a intimidade, a camaradagem e a comparticipação, a não ser naqueles raros momentos em que os casamentos, as recepções ou as festas reuniam uns tantos e então, juntos em confraternização, sem intenção tornavam-se novamente naquilo que tinham sido, amigos, camaradas a comer no mesmo prato, fosse de alumínio, de chapa ou de cartão. Nesses momentos, mais pareciam uma elite ou confraria de gestos e linguagem sincrética, com o seu emaranhado de nomes, regiões, zonas, sectores, jargão, e geografias íntimas das terras de passagem e presença, sempre cortadas por rios, riachos, por florestas ou chanas.
- Isto vem a propósito de macacos. Eu estive durante uns tempos largos na nossa segunda região político-militar, Cabinda, mais precisamente na zona A, e como sabem a vida nas matas não oferecia grande conforto, a comida escasseava, chovia muito, etc.
- Havia fome, papá?
- Havia e por isso comia-se de tudo. Assim, um dia eu e uns outros quatro camaradas matamos uns três chimpanzés para comermos, e quando os levamos para a base e os entregamos para serem preparados, um guerrilheiro ficou todo indignado.
- Então os camaradas querem que a gente coma esses camaradas aí? – indagou.
- Camaradas? Mas são macacos e podem ser comidos muito bem!...
- Não aceito, vou pedir uma guia de marcha para ir contar no camarada presidente Agostinho Neto que vocês querem comer esses camaradas?
- Mas o camarada deve estar a brincar!...
- A brincar, eu? Olha só nas mãos deles, olha só!
- E depois?
- Então os camaradas não estão a ver que as mãos deles são mãos de pessoa?
- E daí, mas não são pessoas e pára de lhes chamar camaradas.
- O focinho deles, então não é o focinho de pessoa? Como é que vamos então comer os nossos camaradas?
Lucinda e Nazamba olhavam para ele como se estivesse a apelidá-las de mentecaptas. Isabel, ria toda contente.
- Mas ó filho, tu queres que a gente acredite nisso? – pergunto Lucinda a rir. onde desejava que Nazam
- Mas juro-vos por tudo que é mais sagrado que é verdade.
- Se o papá está a contar é porque é verdade!...
- Obrigado minha filha, claro que o teu pai não iria contar para a sua família uma mentira. Foi verdade, esse camarada causou-nos uma confusão dos diabos.
- Está bem, está bem. Mas olha, com essa estória da fome e de macacos, quem está com apetite sou, e se fossemos jantar? – sugeriu Lucinda, levantando-se.
Todos levantaram-se e dirigiram-se para a mesa, Isabel correndo à frente e a indicar a Nazamba para que se sentasse, ao lado dela.

OS FILHOS DA ILANDA (KIANDA)


A traineira percorria ligeira a suave ondulação do mar. Na proa, Virgílio perscrutava a escuridão profunda das águas com uma lanterna, buscando o cardume. Gestos regulares de mão, indicavam ao mestre timoneiro o rumo a dar ao barco. A azáfama era enorme, a rede no guincho pronta a ser largada quando chegasse a ordem. Alguns dos pescadores davam umas baforadas rápidas nas beatas de liamba, enroladas ás pressas, outros encostavam-se, lânguidos, junto ás caixas de plástico onde o peixe seria colocado. Peixe cada vez mais escuso e raro, devido ás práticas dos barcos estrangeiros, verdadeiros donos das águas, em roubo descarado.
Desatrevido, o barco ziguezagueava o mar, quando Virgílio, duvidando enxergou o mundo a mudar de curso. Seus olhos aterrorizados viram o oceano transformar-se num enorme espelho azul cristalino onde ele, da amurada baixa da traineira, vazia e despojada de tudo e de todos, mirava para as marinhas entranhas, atulhadas de peixes apresados em redes de ondulante e infindável malha. O bulício estalava em batucada infernal, sinuosamente perdido entre peixes uns chiantes, outros falantes, milhares ainda em angústia atroz, acenando dedos em apêndices tridentes.
Acreditou sonhar, olhou de relance para as mãos para certificar-se que não fumava a droga. O que via era real e acontecia-lhe, pela primeira vez, em vinte anos de mar. Esfregou os liambados olhos, mas a visão permaneceu, real, e para o apavorar ainda mais, três seres escarlates de corpo fusiforme, surgiram nadando velozes até à amurada. O coração disparado não aguentou Virgílio, e caiu para o lado, desacordado.
É que os seres tinham a cabeça de seus três filhos mortos, Alberto aos dois anos, Pitinho igualmente aos dois anos e Luzia aos três.
Quando despertou, viu-se deitado por cima de um oleado, tapado com uma manta suja, e percebeu os colegas a içarem a rede plena de peixe.
A Ilanda (kianda) tinham sido benévola.
De um pulo, quase caindo ao mar, lançou-se à rede, gritando para que o deixassem ver. A custo conseguiram acalmá-lo, e levaram-no para onde anteriormente estava. Um colega ficou, para o guardar. Depois de breves palavras, vendo que não encontrava resposta, desligou do amigo e acendeu a gasta beata de liamba. Deu três longas baforadas e tossiu forte.
“Calma já, mano Virgílio. Fuma então, você não come todo o dia, só bebe, depois não aguenta”.
Virgílio não aceitou a redentora beata que lhe era passada, manteve-se num mutismo completo. Sentia o corpo tremer e, atento, escutou o mar, como que esperando um lamento, um arranhar de unhas sob o casco do barco. Os filhos rondariam por perto, por fim descobrira o que os levara. Silencioso ficou, até o madrugar sereno ter envolvido a embarcação, lançando sombras sobre a amuralha e a cabina, onde um sonolento e
liambado timoneiro, levava a bom porto a farta colheita marinha. Os outros, dormitavam um pouco por todo o lado, a chata posta sobre as águas tranquilas, arrastada na esteira que o hélice deixava pelo mar que ia restando pelas veias ténues do horizonte.
Maria Antónia, a esposa, não o reconheceu quando entrou em casa, encolhido e silencioso. Comeu o caldo de peixe com batata-doce e farinha e foi-se deitar.
“Veio lá com os mubetas (kalundus) dele, terá que se respeitar”, disse para consigo mesma.
Por volta do meio-dia acordou, e sem se lavar, abalou para a praia. Informou aos colegas que durante uns tempos não iria ao mar, tinha um tratamento a fazer. Num outro bairro de Katola.
Estranharam, mas ninguém se pronunciou. Se tinha um tratamento a fazer, era porque necessário. E o facto de o não pretender fazer ali na zona, significava que queria esconder. Ou que do assunto não almejava ainda falar. Poderia ser grave, e não desejava pois, espantar, pensaram. Sem mais, abandonou-os e volveu a casa, onde preparou uma trouxa com roupa e abalou.
Maria Antónia assustou-se, não lhe conhecia outra companheira, era um dos raros maridos que só mantinha uma mulher. Dera-lhe cinco filhos, o segundo e os dois últimos morreram, ainda tinham idade para fazerem outros, estava certa que viriam.
O que se passava mais?
Condenara o facto de não lhe ter endereçado palavra, mas com os homens é assim, são os donos do ser e do estar, falam quando querem e como querem. Alguma coisa ocorrera no mar, estava certa. Tivera briga com alguém do grupo, teria que consultar o mestre timoneiro de imediato. Aflita, saiu sem sequer advertir em casa, mas as informações que recolheu não lhe serviram para nada. Que o marido tinha desmaiado, bebera muito, não comera e que não brigara com ninguém.
Foi uma semana de angústia para Maria Antónia. Aguardou, e cada dia de espera tornou-se um desespero. Partiu para a barra do Tanda à procura dele, já que era lá que tinha raízes o clã que se estendera até à pequena ilha na costa de Katola, onde viviam. Mas aí, dele igualmente ninguém sabia, ou não lho quiseram dizer. Voltou a casa por causa dos filhos e decidiu que o melhor era respeitar, não se arreliar muito, se ele partira é porque tinha uma razão, o dia em que achasse por bem, voltaria.
E de facto assim aconteceu. Como saíra, voltou. Taciturno e silencioso.
A ilha que se estende junto a Katola, tem origens nas areias que o rio Tanda transporta para o norte. É uma língua de areia extensa e coberta de coqueiros e arbustos vários. Suas praias são lindas e plenas de um pequeno molusco delicioso, que os nativos chamam de milonga (mabanga).
A pesca não só é o meio de subsistência, como a arte de vida dos ilhéus. Em tempos remotos também produziu uma concha, hoje desaparecida, que servia de moeda e pagava tributo ao reino do Congo, no que é hoje o norte de Inkuna. Para além da administração colonial, também fora governad por um Tobo (Soba), autoridade tradicional, escolhido em reunião de anciãos
Com a cultura portuguesa a minar cada vez mais os usos e costumes, a tradição foi-se diluindo e bastardeando e pouco restou, em termos de poder vero e real ao último Tobo. Sobrou um cerimonial cultural que, em dias de festa, emprestava o sabor tropical a uma Katola colonial.
Décadas após a independência, esse poder, ainda que indefinido, foi restaurado. A ilha tinha assim um Tobo de linhagem, homem simples, sereno e trabalhador.
Foi a ele que Virgílio se endereçou para solicitar audiência e relatar o que vira naquele dia no mar, e o que os tululas (kimbandas) o haviam aconselhado fazer, após as interpretações. Chegou, inclinou-se numa vénia de cortesia e respeito enquanto batia surdamente uma mão na outra, três vezes em antepassado compasso, após o que, segurou na mão do Tobo com as suas duas e levou-a à testa.
“Grande pai, alegro-me de te ver, e agradeço-te a oportunidade que me dás de te pôr o problema que vive comigo, já há quase três semanas”, disse, permanecendo semi-curvado.
Ao lado do Tobo encontravam-se dois velhos, certamente que seriam os mais velhos dos seus conselheiros, todos sentados em banquinhos, o do Tobo mais elevado. Por trás destes, uma fotografia antiga de seu pai e uma espada, embainhada, que a ele pertencera. Mais acima, o símbolo da república e a fotografia do presidente de Inkuna, tirada quando ainda era jovem. Numa outra parede, numa esteira afixada na parede da casa, duas azagaias e um rabo de boi, ofertados ao Tobo por visitantes. Pelo resto, a habitação era modestamente mobilada, um sofá, dois cadeirões e uma mesa de centro com um vaso de flores secas. Numa secretária ao fundo, um telefone e uma máquina de escrever. Era aqui que o Tobo recebia quem o procurasse, para tratar dos mais diversos assuntos e questões.
“Bom dia, mano Virgílio. Soube que estiveste fora, e que também encontraste problemas no mar, mas a família como está?”, perguntou-lhe, indicando um banquinho para se sentar.
“Estamos todos bem com a graça de Deus, só que aconteceu uma coisa estranha que me está a preocupar. Já fui consultar o tulula, e aconselhou-me a voltar ao mar para ver se o mesmo se repete. Caso isso aconteça, vou ter que agir por que senão meus outros dois filhos vão morrer”.
Em seguida, Virgílio relatou ao Tobo e aos anciãos conforme tudo ocorrera, o que sentira, bem como os conselhos que o tulula lhe dera. Os presentes ouviram com espanto aquele relato incrível, baixando várias vezes as cabeças em uníssono, e emitindo uns estalidos com a língua, precedidos de um “Eh-Eh!” de espanto.
Nunca na vida comum do mar, semelhante coisa se passara com qualquer um deles, e jamais relato tão maravilhoso se ouvira. Maravilhoso, não no sentido de lindo, mas sim de maravilhar, de espantar e assustar.
Finalmente, o grande Tobo afirmou que se isso se confirmasse, poderia estar ligado ás divindades das águas, ás ilandas, pois só elas se podiam mostrar assim, quer em forma de pessoa, de peixe, ou as duas misturadas, e sendo tanto homem como mulher, neste caso os
filhos falecidos de Virgílio. Havia pois que reconfirmar, ter a certeza, ás vezes poderia ter sido que ele tivesse bebido ou fumado de mais e, sem comer, tivesse sonhado tudo isso. De qualquer das maneiras, mesmo se tivesse sido sonho era um indício, já era um sinal, um recado que tanto poderia ser bom quanto mau. Teria, pois, que voltar ao mar e seguir os conselhos do tulula que visitara, homem avisado e sabedor, de fama conhecida de todos com vidas ligadas ao mar, lagoas e rios, enfim, ás águas. Mas que tivesse cuidado, se as piores das previsões se realizassem, não poderia haver mortes, isso ele jamais permitiria e aceitaria.
Mais reconfortado, Virgílio tirou da sacola que trazia uma garrafa de vinho e ofereceu-a ao Tobo. Os velhos sorriram largo sorriso, quando ordenou lá para dentro que trouxessem copos, o que foi feito de imediato. Após as oblações, beberam e Virgílio partiu satisfeito, aliviado, saíra-lhe um peso do coração.
Maria Antónia notou as mudadas mudanças no semblante do marido, irradiava a confiança que lhe conhecia, todavia Virgílio não lhe dirigiu qualquer palavra. Por contra, chamou um dos moleques e mandou avisar ao contramestre que logo retomaria a pesca, que não partissem sem ele. Comeu a massa com carne que a mulher lhe pusera à frente, e foi-se deitar por umas horas, deixando-a a olhá-lo pelo rabo esguio do olho, como que tentando adivinhar o que estava a acontecer.
Casados há cerca de catorze anos, tinham tido cinco filhos e a vida dela fora mais ou menos tranquila. Virgílio não era aventuroso nem de muitas festas, era homem apegado ao lar. Não fossem os óbitos de três das crianças, poder-se-iam considerar uma família abençoada por Deus.
Dois anos após o casamento nasceu-lhes o primeiro filho, Nauel, hoje com doze anos. Segui-se Alberto que faleceu em 1988, vítima de sarampo, o qual antes puxou Tristeza. A Tristeza, segui-se Pitinho que veio a falecer, por paludismo, em 1992. Este, meses antes da partida, puxa Luzia que não o querendo abandonar, a ele foi reunir-se, no mundo dos albinos, à idade de três anos, em 1995.
Essas mortes causaram muita celeuma nas famílias, houve acusações de ambas as partes,
todavia ninguém avançou contundências conclusivas. O casal dava-se bem, não existiam rivais e com a mortandade infantil a grassar por Inkuna, sobretudo por paludismo, a tradição ficava um tanto ou quanto abalada, pois nos lares de quem se podia suspeitar feitiços ou maledicências, ou nos que o tulula indicava por adivinhações, tragédias idênticas ocorriam com igual desproporção e à vontades. Hoje em dia, as crianças nasciam e partiam com uma espontaneidade assustadora. Há muito que as gentes desistiram de levar os familiares aos hospitais, por pura perda de tempo e de recursos Inkuna desprenhava-se dos vivos com apavorante velocidade. A face cavernosa da morte rondava o país, nos canos dos fuzis, no trovejar assassino das minas, na lambida picante do mosquito, na podridão das águas que escorrem em amoroso afago pelos lixos urbanos, na salubre invontade dos que, serenos e inamovíveis, observam do gélido alto o furor do cataclismo.


Oito meses decorreram dos acontecimentos, esgueirados no nascer e desfalecer da lua, oito vezes espigada e fenecida sobre as ondas do mar, quase sempre sereno. A ilanda, tranquila, há muito que não transformava sua ira ou descontentamento, em tempestades que os pescadores e suas famílias temiam. Caridosa, distribuíra peixe em abundância.
No lar de Virgílio, a vida voltara ao normal. Aos poucos, começou a endereçar a palavra a Maria Antónia e já se sentava com ela, na mornez da tardinha, a ver televisão, rodeados da molecada mais próxima. Depois, jantava um prato forte, agarrava no saco de tela e partia para a faina, para o mar, nunca ficando mais de um dia por a traineira não ter câmara frigorífica.
Acabara por descontrair-se, perdera a tensão altiva que o dominara por muito tempo. Sentiu-se arrependido dos pensamentos aleivosos que tivera para com a mulher, e das descontroladas ideias que nele mandaram senhoris. Afinal, tudo não fora mais de que um sonho, hoje duvidava até da visão que tivera e das emoções que experimentara. Parara de fumar liamba, conquanto tal tornasse as noites mais longas e árduas. A erva ajudava os pescadores a passar o tempo no mar e a diminuir o esforço da labuta. O peixe era ou não era, e quando não o era, a ansiedade da busca, o silêncio da expectativa, ou o simples passar das horas longas e escuras, eram melhor contornados com o acender da beata redentora. Tratava-se de um gesto cultural, tão simplesmente uma sintonização com as forças nocturnas da natureza. Um namoro do harmonioso correr da diligência com o tédio do tempo. O encontro do almejado com a reserva do possível. Eram as trevas a namorejar o compasso latejante do medo.
Como sempre, procurava o cardume com a lanterna. A noite estava escura, o céu limpo, pontilhado pelo que os antigos diziam ser pirilampos alumiando os caminhos para os espíritos errantes, aqueles dos que haviam morrido em terras que não as suas, ocorridas há muito. Desde que os povos do norte desceram a África, atravessaram as florestas tropicais e ocuparam as vastas regiões de savanas, a sul do Equador até ao trópico de Capricórnio, escorraçando os autóctones.
Procurou pelo Cruzeiro do Sul, tomou nota do lado em que a costa se encontrava, e concentrou-se novamente na escuridão do mar profundo. Sentia que o peixe rondava fácil, não muito distante. Por duas vezes avistara os pequenos cardumes fugindo, sua fosforescência na crista das ondas que o casco da traineira produzia ao cortar as água. E por fim, o que ele tanto temera e acabara por esquecer, tornou a suceder. Sentiu o barco oscilar, como se sacudido por onda gigante e adamastora, agarrou-se à amurada com todas as forças, e viu a água rodopiar, envoltos por um remoinho que os ameaçava engolir até ás redondas profundezas do oceano. Virgílio gritou por Deus e pelos antepassados que se lembrava, suplicou a clemência da ilanda, mas tudo em vão. No ensurdecedor turbilhão, saltavam os peixes que há pouco tanto procurava e, no seu seio, os seres escarlates que já vira, os filhos idos para o que ele agora confirmava ser o mundo e a vida das águas, Alberto, Pitinho e Luzia. Alongavam os escamosos braços, rogavam que se juntasse a eles, se o não fizesse seus outros dois irmãos o fariam, estava escrito na linha da vida da mãe, cujas origens eram as águas.
Ao despertar, encontrou-se no leito do quarto de dormir do casal. À volta, uma série de anciãs, umas sentadas na cama, outras em esteiras no chão. Quando a velha Maria das Dores olhou para ele inadvertidamente, e viu dois olhos esbugalhados mirando-a, soltou um grito agudo e saiu do quarto a correr, logo seguida das outras.
Virgílio, assustado, de mente ainda lamacentamente nebulosa, tentou sentar-se na cama, todavia o corpo não correspondeu ao desejo. Há dois dias que desmaiara, e só não o deram por morto, por que viam e ouviam sua respiração, feito um qualquer nzumbi irrespeitoso. No dia em que o trouxeram, no rosto então sereno, não havia indicações de ter havido luta, ou sinal que contrariasse o que relataram. Contaram que se pusera a gritar, a balbuciar coisas que ninguém entendia, certamente palavreado das divindades aquáticas, tremendo violentamente agarrado à amuralha, e que, finalmente, acabara por perder os sentidos. Indicaram que já não estavam a gostar de o ter no mar, causava muita consternação e temores. O que verdadeiramente lhe acontecera ninguém conseguia explicar, haveria que aguardar.
Dali para diante, nunca mais o ouviram falar, a língua colara-se ao chão da boca, impenitente. Desistiu da pesca e, sem sair da ilha, começou a aprender o ofício de pedreiro. Andava pelas obras, fazia os serviços que lhe ordenavam, ficando parado ocasionalmente a olhar para o mar quando o podia avistar. Não era rara a ocasião em que um dos colegas, muito a contra gosto, tinha que o abanar, trazê-lo sacolejado de volta ao mundo da obra e da tarefa. Todos sabiam da estranha estória, os velhos conselheiros do Tobo haviam relatado à sua maneira, que tivera visões no mar, e que vira a ilanda por duas vezes.
Recolhia cedo a casa, os filhos e outras crianças nem ousavam falar na sua presença, tão estranho parecia. A família começou a evitá-lo. A esposa parara de dormir no leito comum, repartia a pequena cama de Tristeza, ambas emaranhadas em receios e desconfianças.
Sentava-se, sozinho, num velho cadeirão de napa na pequena varanda traseira da casa, até incertas horas da alta madrugada, à escuta. Intuía-se que esperava alguma coisa ou alguém, que tinha a certeza que viria, só que não sabia quando.
Uma noite, seriam uma e meia da madrugada, Virgílio levantou-se do cadeirão, silencioso, para não assustar o gato que há muito miava à porta da cozinha, no quintal. Por fim avistou-o. Um gato grande e branco, chorando miados estrídulos que faziam as pessoas encolherem-se nas camas suadas, com pensamentos que não ousavam falar. Muitas, esperavam até ouvir o vuvular (bungular) do feiticeiro nas portas ou nas paredes das casas, sabiam que quando assim acontecesse, o lugar estaria amaldiçoado, alguém teria mandado malefício. Nestes momentos a
mente humana sente profundamente a invariável culpa, culpa que esculpe fundo no ventre do coração os calores do inferno e do medo ancestral.
Por isso ficaram aliviadas quando os miados do gato pararam, e puderam enfim dormir apaziguadas e poupadas.
Na manhã seguinte, ante o espanto incrível de todos, Virgílio foi preso, acusado de ter assassinado a facadas sua consorte porque, como ele contara à polícia, quando avistara o enorme gato branco, atiçado, miando miados esdrúxulos aos rebordos do telhado da casa, atirara-lhe um balde de água, tendo-se imediatamente transformado na esposa. Que vissem se não estava molhada, se não estava molhado o trajecto da porta da cozinha no quintal, ao quarto do casal onde se refugiara!...
Os comentários foram vários e díspares. Os grupos formaram-se de acordo com a crença ou descrença sempre duvidosa dos presentes. As mais incríveis possibilidades foram enumeradas, os “eu já adescunfiava” ouviam-se por todo o lado e, por fim, para não ser queimado, a polícia teve que retirar a pressas o corpo molhado de Maria Antónia.
Só quem não é de Katola e de Inkuna, é que desconhece que o gato só é gato durante o dia, à noite vira feiticeiro que vai assustar, ou colocar azares nas casas das pessoas.
Olhassem para ele, que perdera três filhos, quando afinal fora a mãe quem os comera, a Alberto, a Pitinho e a Luzia.
Maria Antónia ainda lhe implorara que não a matasse, todavia não aquiesceu.
O que estava feito estava feito.

POEMAS


RUGAS

Rolam
as décadas
no semear
depauperado
da quimera

e no olho vítreo
da reminiscência
nem mais a sombra
das luas cansadas
reflecte no opaco
o soslaio
da tranquilidade
entanto almejada



CASCOS

No fundo do berço
dourado
mal amanhado
entre choros
e crisântemos
olhos em solilóquio
sorriem nódoa de parede

sorriem escárnio
arrancado
nas dunas
aos cascos
apagados
de milénios
de traços
e vírgulas



O MAR

Vi-te
trajada furor das ondas
desfeitas
em meus braços

Vi-te
Preenchida de conchas
do meu ouvir
e no paladar
do meu sentir
fostes-te pelo vazar do mar
deixando-me o eco
da eterna solidão
verde-azul

TRAIÇÃO



Felizberto Matias, oficial das forças armadas, olhos colados no écran de televisão, admirava as famosas pílulas azuis, reputadas de moderna tesão do fim do século e milénio. Se o mundo acabar no ano 2000 como predizem certos imbecis, pensava ele, iremos todos de pau em pé.
Consigo encontrava-se Osmar Martins, piloto aviador, amigo de infância, com quem havia conferido medidas, calibres e planos de voo nos idos anos da ingenuidade, em mútuas e arrojadas descobertas eróticas.
“Afinal”, dizia ele ao amigo, “essa pílula para a bazuca não é senão o pau de Cabinda.
É necessário referir que o termo bazuca, utilizado por Felizberto em assuntos de sexo, refere-se ao órgão sexual, por muitos também chamado de extrovenga, aquilo, verga, pila, bacamarte ou, simplesmente de Alberto, Joaquim, Muntu, conforme o gosto, o momento ou a situação. Felisberto assim o denomina por ter sido bazuqueiro em duas das guerras angolanas.
“Como sabes?”, perguntou Osmar Martins com um sorriso.
“Não é preciso ser muito inteligente para o ver. Olha o mbrututu por exemplo, vai a qualquer farmácia de Lisboa e lá o encontrarás.”
“Eu nunca vi!”
“Porque nunca perguntaste. Esse mesmo pau de Cabinda vende-se numa embalagem toda bonita, eu já o comprei.”
Da cozinha do pequeno apartamento, a voz de Benilde Matias, esposa de Felizberto, fez-se ouvir.
“Já querem jantar, ou vai mais um uisquizito?”
Felizberto olhou inquiridor para Osmar e ao aceno afirmativo, retorquiu.
“Aguenta mais um pouco, nós ainda vamos tomar outro. Também queres?...”
“Não, obrigada, veio a resposta da cozinha.
Osmar olhou firmemente para Felizberto, que desviou os olhos, como que envergonhado. Cada vez que Osmar o olhava assim, sentia-se desprotegido. O pior de tudo é que esse sentimento agradava-lhe, havia ali uma declaração que ele apenas intuía e lhe era positiva.
“Quando é que voas outra vez?”, perguntou Benilde que entrava na sala com uma travessa de comida na mão, poisando-a na mesa.
“Talvez daqui a uns quinze dias, tenho horas a mais e vou reclamá-las, preciso de um descanso.”
“Vais a Portugal?”
“Para onde querias que ele fosse?”, indagou Felizberto. “Só voamos para lá e Joanesburgo.”
“Isso é falso”, retorquiu Osmar. “Também vou ao Brasil e outros sítios.”
“Meninos, se ficam aí na conversa o jantar vai esfriar”, informou Benilde, fazendo um sinal para se virem sentar à mesa.
Os três para lá se dirigiram. Benilde abriu as tigelas fumegantes, para revelar um apetitoso repasto.
“Que cheiro maravilhoso!...” disse Felizberto, enquanto passava a garrafa de vinho ao amigo, para a abrir.
“Não admira que o Felizberto não te deixe, boa na cozinha, boa na caminha, lá diz o velho ditado.”
“Nunca ouvi esse ditado”, respondeu Benilde.
Sentiu-se entristecida e tentou esconder. O marido há mais de cinco meses que se mantinha alheio às obrigações conjugais. Chegado o momento, a bazuca, como ele em tempos idos tão apropriadamente chamava ao apêndice, não mais disparava porque amorfo. A mulher bem tentava todas as tácticas que nos anos da recruta nupcial ele lhe ensinara, incluindo o “avanço por fileiras”, mas sem resultado. Felizberto, o famoso bazuqueiro, não conseguia lançar um simples petardo carnavalesco. Ele próprio não se explicava. Abatido, ficava a olhar o penduricalho na mão da mulher, que, desalentada, acabava por lhe dar as costas e, em grosso suspiro, adormecia.
“Não dizes nada?”, perguntou Osmar olhando intencionalmente para o amigo.
“Que queres que diga?”
“É que ficaste com uma cara de zangado, de alguém injuriado!”, disse.
Benilde, que não estava a gostar do rumo que a conversa tomara e viu o momento para o desviar, retorquiu de imediato
“Ah!, isso faz-me lembrar que gostas de bacalhau, não é?”
“Assim é, mas o que tem o bacalhau a ver...?”, respondeu Osmar.”
“Pois antes de ires vou fazer-te um prato de bacalhau que nunca comeste”, disse Benilde, fingindo que o não ouvira.
“Qual é?, perguntou Felizberto? “Já agora também estou curioso.”
A tensão desfeita, Benilde sentiu-se novamente à vontade e pediu um pouco de vinho.
“Que famoso prato de bacalhau é esse, que nunca comi?”, quis saber Osmar.
“Pois aposto que nunca o comeste; bacalhau injuriado.”
Osmar e Felizberto desataram a rir, de facto nenhum deles ouvira antes falar do dito prato.
“Estão a ver o que dá serem dos mabululus? É isso!...”
“Então explica lá porque é que o bacalhau é injuriado”, pediu-lhe o marido, servindo-se outra vez.
“Porque é cozinhado, ou melhor, adaptado à nossa moda, daí a injúria que lhe é feita.”
“E por se adaptar ao nosso gosto torna-se injúria? E qual é a injúria?”, perguntou Osmar.
“O uso do que é nosso, os kiabos e o óleo de palma por exemplo.”
Os dois ficaram a olhar para ela, sorridentes, à espera que continuasse, talvez valesse a pena experimentar o tal de bacalhau.
“Pois Osmar, no próximo sábado estás convidado para vires comer o bacalhau...”
“Alto lá, espera aí!... primeiro tens que nos explicar como se faz, senão quem é capaz de ficar injuriado é o meu estômago...”
Acharam graça à resposta e Benilde ainda ria quando respondeu.
“Claro que tem que haver o bacalhau, depois os quiabos, o dinhungo, o tomate, a cebola e o jindungo. Há mesmo quem goste com jimboa.”
“Mas isso é funji de peixe!”..., admirou-se Osmar.
“De facto é acompanhado de funji e leva mais ou menos os mesmos ingredientes. Mas não me interrompam. Limpa-se o bacalhau e corta-se aos pedaços, que se colocam numa panela com um pouco de água. Quando estiver a ferver põem-se os outros ingredientes e juntas o óleo de palma e deixas a apurar.”
“Parece que não teremos nada a perder em tentar”, disse Osmar, dando uma cotovelada no braço de Felizberto.
“Então ficamos combinados, próximo sábado. Pena é que não tenhas mulher, seria mais agradável”, reclamou Benilde.
“Mulher? Nem a brincar, só servem para aborrecer.”
Benilde olhou para o marido, como que pedindo ajuda, solidariedade pronta e inequívoca. Este fez que não entendeu. Frouxo!, insultou-o em pensamento.
“Não digas asneiras. Claro que uma mulher é necessária.” atirou, tentando não mostrar a raiva que sentia.
“Pois eu dispenso. E logo nos dias de hoje, uma cambada de interesseiras.”
“Não te conhecia assim tão misógino.”, insistiu Benilde, mais calma.
“Até nem o sou, preferi é viver solteiro. Olhem, no outro dia visitei a casa de um paquistanês e sabem o que estava pendurado na parede, em sítio bem visível?...”
“Não!”, respondeu o casal.
“Uma chibata! Isso mesmo ou, se quiserem, um chicote.”
“Artesanato?”
“Foi o que eu pensei, mas não. Quando perguntei para que servia, sabem o que me respondeu? Que a chibata estava ali para que a esposa visse. Fez esta afirmação à frente dela e das crianças, dois rapazotes que logo sorriram.”
“Troglodita, troglodita é o que esse homem é.”
“Calma filha, não te zangues.”, tentou apaziguar Felizberto.
“Não me zango, achas que é justo?”
“Claro que não...”
Osmar há algum tempo que farejara insegurança no casal. Havia qualquer coisa que não ia bem, Benilde andava nervosa e demasiado susceptível, Felizberto, inseguro e escorregadio.
“Mas o que vos contei ainda não é nada...” continuou.
O subconsciente desafiava-o, desejava ainda que sem o saber, provocar uma situação na qual pudesse tirar o pulso, medir a tenção.
“Não quero ouvir mais!...”
“Pois devias, porque as tuas primas andam com uns libaneses. Elas que se cuidem...”
“O problema é delas.”, retorquiu Benilde.
“Pois o fulano aconselhou-me que quando me casasse, ao chegar a casa, desse todos os dias uma bofetada à minha mulher.”
“Estás a gozar comigo, não é? Queres exasperar-me. Porque haverias de dar uma bofetada na mulher?”, perguntou Benilde.
“Fiz-lhe a mesma pergunta e disse-me que não me preocupasse com isso, se eu não soubesse porquê, ela sabê-lo-ia.”
Osmar olhou para Felizberto, na expectativa de uma reacção a favor da mulher. Este limitou-se a baixar os olhos e a virar a cara para o lado para que Benilde não reparasse no sorriso esboçado.
“Rua, todos para a rua, não vos quero cá em casa...”
“Mas ó querida, não vês que o Osmar está a brincar contigo, a provocar-te?”
“Pois acho uma brincadeira de muito mau gosto.”
Pouco depois, levantaram-se da mesa e sentaram-se na parte da sala que servia de estar. No cadeirão de dois lugares ficaram Felizberto e Osmar, no cadeirão pequeno, Benilde.
“Porque não vais fazer o café?”, perguntou ao marido.
“E aproveita para trazeres um cheirinho.”, solicitou Osmar.
Felizberto dirigiu-se à cozinha, Benilde colocou o seu CD preferido e Osmar acendeu um cigarro.
O ambiente ora descontraído, sentiam-se satisfeitos.
Na cozinha, Felizberto assobiava ao som da música, enquanto vertia a água a ferver no saco de pano. A casa foi invadida pelo aroma doce do café fresco e puro. Momentos depois, apareceu com as xícaras de café numa bandeja. Dirigiu-se a um pequeno armário e retirou uma garrafa de uísqui e uma de licor para a mulher.
“Para o mês quero ir à África do Sul.”, disse Benilde, depois dos cafés servidos.
“Mas ainda há sete meses estiveste lá!...”
“Estou cansada desta vida que levamos aqui. Nunca se pode fazer nada ou ir a sítio algum. Sabes quando fomos a um cinema pela a última vez?”
“Lá isso é verdade, se não são as farras e a praia, embrutece-se nesta nossa terra.”
Osmar esticou o braço com o copo para Felizberto servir e, no gesto, manteve o joelho colado ao do amigo.
“Nem a televisão nos serve!... Não consigo sequer ver o telejornal.”
“Não sejas tão exigente!...”
“Não é isso. Quase sempre me aparece aquele parvalhão de orelhas de abano que pensa que local de palhaço é à frente de uma câmara a gesticular, depois, só se ouvem notícias de guerra.”
“Parabólica filha! PA-RA-BÓ-LI-CA!... ou então não és gente fina, afirmou Osmar.”
“Não me comeces a aborrecer outra vez!”, disse Benilde.
“Pois se quiseres ir, vai.” disse Felizberto, para logo sentir a pressão do joelho de Osmar aumentar ligeiramente.
“Penso ficar uns quinze dias. Quero ir a Sun City e ao Cabo, onde nunca fui.”
Felisberto não conseguia concentra-se na conversa. Lutava para afastar o seu joelho do do amigo, todavia sentia-se paralisado e, mais uma vez, com aquela sensação de prazer a invadi-lo por completo.
Até conseguiu uma erecção. Atordoado, deu um pulo da cadeira, o que a todos assustou.
“Santo Deus, o que se passa?”, perguntou Benilde aparvalhada.
“Um rato, um rato, gritou ele.”
“Rato? Nunca tivemos ratos!...”
“Por ali, foi por ali...”, apontou.
Osmar olhou curiosamente para Felizberto. Foi à entrada da cozinha, deu uma vista de olhos, e regressou sorrindo. Olhou para o relógio.
“Olhem, meus queridos, vou-vos deixar com os vossos ratos. Está na hora.”
Despediu-se do casal e desceu as escadas, feliz e contente consigo próprio. Percebera as emoções de Felizberto e considerou os dados lançados.
“Ratos!...” disse, já a entrar para a viatura. “Um grande rato me saíste tu!”, pensava no amigo.
Na semana seguinte, houve o esperado almoço, cujo prato principal foi o bacalhau injuriado, comido com bastante agrado pelos quatro. Osmar trouxera uma amiga antiga, Josefina, pela aparência muito mais antiga do que ele. Felizberto, feliz, talvez pelas várias garrafas de um bom vinho alentejano por eles bebido, manteve-se afastado do amigo. Benilde e Josefina, riam sobre o nome da iguaria que haviam acabado de comer.
“Estava tão bom que varremos a injúria toda.”, disse Josefina, já com um copo a mais.
“E se fossemos para a praia?”
Levaram uma sombrinha e dois luandos para se sentarem, não iriam banhar-se. Na caixa térmica enfiaram umas gasosas e mais duas garrafas de vinho, sem ninguém se preocupar quem seria o volante, todos eles acariciados pelo longo abraço de Baco.
Quando as mulheres foram banhar os pés, Osmar deitou-se ao lado de Felizberto que perscrutava o céu nebuloso. Olhou-o fixamente nos olhos e, para sua surpresa, Felizberto não desviou o olhar.
“Tenho que me lembrar da marca deste vinho!” disse Osmar a brincar, tentando esconder a reacção que o facto lhe produzira.
“O quê?!” perguntou Felizberto, apanhado de surpresa e sem compreender.
“O vinho! O vinho...”
“O que tem o vinho?!”...
“Pela primeira vez não desviaste os olhos de mim...”, sussurrou.
Felizberto estremeceu como se uma lufada de vento gélido lhe tivesse atravessado a alma. Virou a cara para o lado e tentou não mostrar o nervosismo, a ansiedade.
“Não sei porque tentas fugir das tuas emoções.”
“Fugir de quê?” quase gritou. “Estás parvo ou quê?”
“Bom, aqui não é o sítio nem o momento para conversarmos. Quando...”
“Não há nada a conversar” interrompeu Felizberto, agressivo.
Osmar olhou de soslaio para onde as mulheres estavam. Tranquilo, avançou o cavalo, preparando o final do jogo, que sentia já ter ganho.
“Quando a Benilde for à África do Sul, teremos muito tempo para nos explicarmos. Lembras-te das nossas brincadeiras de criança?”
Felizberto sentiu-se desfeiteado e os mecanismos de defesa funcionaram aceleradamente. Nunca se vira numa frente de batalha sem munição para se defender, e ainda por cima com aquela maldita e inesperada erecção da bazuca, que o obrigou repentinamente a deitar-se de bruços. Acreditou que Osmar não tivesse notado, porém este notara e fizera que não, cavalheiro e paciente.
“Éramos crianças, não digas disparates. Todas as crianças brincam de papá e mamã...”
“Todas?...”, cochichou, dando o xeque-mate.
As mulheres aproximavam-se e a conversa foi interrompida, para alívio de Felizberto.
Ao cair da noite, regressaram, jantaram, beberam o resto da garrafa do bom vinho alentejano e, ao deitarem-se, Benilde foi agradavelmente surpreendida por uma investida das forças armadas, em gloriosa carga da artilharia ligeira, incluindo o tão almejado “avanço por fileiras”, repetido várias vezes. Horas largas depois, meio adormecida e exausta, abraçada ao marido que já ressonava os alentejanos vapores etílicos, ainda se ouviu a ciciar.
“Temos que fazer mais vezes esse bendito bacalhau injuriado!...”
Duas semanas depois, partiu para a África do Sul, feliz com Felizberto, mais do que nunca seu amantíssimo esposo. Após aquela noite, o nosso bazuqueiro não mais se rendera.
Com inimigo certo a acossá-lo e uma retaguarda a proteger, combatia heroicamente, não obstante a maior parte das vezes assustado.
Benilde nunca se sentira tão lambuzada de tanto e viril amor.
Não imaginam pois a surpresa dos amigos, ao lerem em jornal da urbe que uma mulher, citada como Benilde, havia baleado o seu esposo, Felizberto, oficial das forças armadas, quando ao regressar da viagem à África do Sul, o flagrara em altos voos nos braços de um piloto, Osmar, numa engajada batalha amorosa na cama do casal.
Tresloucada, agarrara na pistola do marido que estava na mesa de cabeceira e ferira os dois a tiro, já estando ambos fora de perigo.
A esposa foi conduzida ao hospital Militar, enquanto balbuciava incessantemente, sobre o efeito dos sedativos:
“Bacalhau injuriado, ai é?!... Bacalhau injuriado, ai é?!...”