quarta-feira, 4 de novembro de 2009

COLANS


Esta crónica, verídica, escrevia-a em Maio de 2005 e foi uma das que mais prazer me deu a compô-la, por isso, já tantos anos passados, desejo compartilhá-la novamente convosco. Ao olhar para a televisão, numa notícia sobre os casamentos homossexuais, logo me recordei deste meu trabalho, escrito durante as olimpíadas de Sidney, na Austrália, quando a minha virilidade fora tão abjectamente posta em causa. Logo eu, hum?!... Assim, permitam-me que vos reconte o rocambolesco acontecimento, muito antes da Bruna(o) e do seu jovem “marido” darem este passo de puro avant-guardismo nacional.


Escrevi então, e transcrevo:


A semana passa alguns dos semanários luandenses fizeram furor com o primeiro “casamento “ gay nacional. Não desejo referir-me ao mesmo, cada um come do que gosta, sobretudo na era das modernices, como disse aquele coitado que, chegado de surpresa a casa, apanhou a consorte em desvios matrimoniais com um big, big man: "Ai filha, tu e as tuas modernices! Um dia ainda te apanho a fumar na cama".

Viva pois a globalização.

Há bem pouco tempo, tivemos oportunidade de ver na televisão, penetrando-nos pela casa, atletas de todo o mundo a desfilarem os novos trajos olímpicos, os colans. Delirámos com as centenas deles, cada qual o mais bonito, o mais multicolorido, o mais berrante e chamativo. Inteiros, só parte de baixo, meia perna, etc., numa requintada inovação da moda desportiva. Os que mais atenções chamaram, foram os usados pelos nadadores, numa versão unisexo, às vezes até extravagantes.

Se vos falo desta peça de vestuário, é com o mero intuito de levantar o moral daqueles poucos machos angolenses que a usam, como eu, nas minhas corridas matinais pela Ilha do Cabo. Falo ainda, e igualmente, para protestar quanto ao pernicioso subdesenvolvimento dos luandenses em matérias de colans, e sobre os desagravos a que fui sujeito ipso facto.

Sou dono de um colan preto, curto, que uso ocasionalmente no meu footing matinal na Ilha do Cabo, como já referi. Nada de mais, aliás até somos dois, um vizinho igualmente usa um similar há anos. Talvez nele, por ser negro, o colan passe despercebido, enquanto que eu, com esta pele de kilombo kia hasa (albino) mal disfarçado, provoco toda uma gama de apartes. Jocosos uns, maldosos outros.

Um dia, na contra mão, vejo um casal de meia-idade avançando em passo lento. Ele, um senhor alto, muito alto e de ar distinto. Ela, muito mais baixa e redonda, igualmente dama de distinção. Segundos escassos antes de nos cruzarmos, ele estaca a olhar para mim e, malgré soi, as palavras disparam como pedras:

“Um homem de colans?!...”, escapa-se-lhe, do fundo da alma, a revolta e o descrédito no que via.

A senhora ainda lhe deu uma cotovelada na coxa e olhou para o lado, envergonhada. Só sei que nunca mais os vi na Ilha. Mais vale a pena prevenir do que remediar, terão pensado, vendo-me certamente um marginal perigoso.

Outra vez foi um damo, num carro branco bonito. Vinha, largado, a caminho de Luanda e ao ver-me, trava bruscamente.

Mal imaginava eu porquê!

Pouco depois, já tendo dado a volta na bolacha da estátua do pescador, passa novamente, agora em câmara lenta, tirando os azimutes. Quando entro na recta final, já no outro lado, a caminho da minha casa, eis que dou com o damo estacionado, olhando-me de viés, o motor ligado, muito adequadamente, não vá o diabo tecê-las e afinal o que ele pensa que é, não é, já que nos dias de hoje não dá para arriscar em desmasia, como diz um amigo. Agora julgo saber o que as donzelas sentem quando observam o lobo mau a rondar.

Finjo que não noto, e uns metros mais adiante, ouço a viatura arrancar, passando por mim, de fininho, esvaecendo-se no horizonte, a caminho de Luanda. Teria achado que eu não era, só pode!

Ao chegar a casa penso atirar com os danados colans para o lixo, mais aí a minha sensibilidade revolucionária impediu-me. Disse para comigo mesmo, “bolas, foi assim que a Alemanha perdeu a guerra”, e continuei a usá-los.

Próxima cena!

Um belo domingo, por volta das seis da manhã. Na curva ao fundo da Ilha, encostados às pedras na berma da estrada, dois casais, elas de pé, os barrigudos sentados nas duas caixas térmicas, varrendo o que seriam, penso eu, as últimas fresquinhas da noitada anterior. Uma das tias, a de olho de lince, tão aguçado quanto o seu instinto de caça, mira o arcaboiço do rapaz aqui, que se aproximava naquela passada rítmica e certa. A uns vinte metros, gosta do que vê (presunção e água benta cada um usa da que quer) e quase que não contem a emotividade. O marido (será?) nota o lance da balzaquiana e também olha, preocupado. Apanhada desprevenida, vira-se lesta para a amiga e diz:

“Olha pr’áquele!... Estes velhos têm a mania que ainda f…” (auto censura).

Encho o peito, diminuo o passo a provocar e desafio, garboso, o olhar das manas, quem pensam que são?

“Já viste o cu do gajo? Deve ser bicha!...”, responde lesta a outra, quase na minha cara.

Acuso o toque, possa, não sou de ferro para ser assim ofendido à toa!

“Deve? É, certamente!...”, e larga uma gargalhada de bruxa, vingada pelo deslize não controlado.

O marido (será?), talvez ainda enciumado, atira lenha no fogo.

“O gajo deve ser veado… de colans?”, ouço, já uns cinco metros à frente, meu corpo curvado e a passo lento, vencido.

Não imaginam pois o conforto moral que senti quando vi as Olimpíadas de Sidney., sobretudo a natação. Graças a elas, continuo a usar os meus velhos e surrados colans, orgulhosamente só, porque estou seguro quando o meu vizinho ler este desabafo, vai parar de usar os seus.

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