domingo, 2 de agosto de 2009

OS FILHOS DA ILANDA (KIANDA)


A traineira percorria ligeira a suave ondulação do mar. Na proa, Virgílio perscrutava a escuridão profunda das águas com uma lanterna, buscando o cardume. Gestos regulares de mão, indicavam ao mestre timoneiro o rumo a dar ao barco. A azáfama era enorme, a rede no guincho pronta a ser largada quando chegasse a ordem. Alguns dos pescadores davam umas baforadas rápidas nas beatas de liamba, enroladas ás pressas, outros encostavam-se, lânguidos, junto ás caixas de plástico onde o peixe seria colocado. Peixe cada vez mais escuso e raro, devido ás práticas dos barcos estrangeiros, verdadeiros donos das águas, em roubo descarado.
Desatrevido, o barco ziguezagueava o mar, quando Virgílio, duvidando enxergou o mundo a mudar de curso. Seus olhos aterrorizados viram o oceano transformar-se num enorme espelho azul cristalino onde ele, da amurada baixa da traineira, vazia e despojada de tudo e de todos, mirava para as marinhas entranhas, atulhadas de peixes apresados em redes de ondulante e infindável malha. O bulício estalava em batucada infernal, sinuosamente perdido entre peixes uns chiantes, outros falantes, milhares ainda em angústia atroz, acenando dedos em apêndices tridentes.
Acreditou sonhar, olhou de relance para as mãos para certificar-se que não fumava a droga. O que via era real e acontecia-lhe, pela primeira vez, em vinte anos de mar. Esfregou os liambados olhos, mas a visão permaneceu, real, e para o apavorar ainda mais, três seres escarlates de corpo fusiforme, surgiram nadando velozes até à amurada. O coração disparado não aguentou Virgílio, e caiu para o lado, desacordado.
É que os seres tinham a cabeça de seus três filhos mortos, Alberto aos dois anos, Pitinho igualmente aos dois anos e Luzia aos três.
Quando despertou, viu-se deitado por cima de um oleado, tapado com uma manta suja, e percebeu os colegas a içarem a rede plena de peixe.
A Ilanda (kianda) tinham sido benévola.
De um pulo, quase caindo ao mar, lançou-se à rede, gritando para que o deixassem ver. A custo conseguiram acalmá-lo, e levaram-no para onde anteriormente estava. Um colega ficou, para o guardar. Depois de breves palavras, vendo que não encontrava resposta, desligou do amigo e acendeu a gasta beata de liamba. Deu três longas baforadas e tossiu forte.
“Calma já, mano Virgílio. Fuma então, você não come todo o dia, só bebe, depois não aguenta”.
Virgílio não aceitou a redentora beata que lhe era passada, manteve-se num mutismo completo. Sentia o corpo tremer e, atento, escutou o mar, como que esperando um lamento, um arranhar de unhas sob o casco do barco. Os filhos rondariam por perto, por fim descobrira o que os levara. Silencioso ficou, até o madrugar sereno ter envolvido a embarcação, lançando sombras sobre a amuralha e a cabina, onde um sonolento e
liambado timoneiro, levava a bom porto a farta colheita marinha. Os outros, dormitavam um pouco por todo o lado, a chata posta sobre as águas tranquilas, arrastada na esteira que o hélice deixava pelo mar que ia restando pelas veias ténues do horizonte.
Maria Antónia, a esposa, não o reconheceu quando entrou em casa, encolhido e silencioso. Comeu o caldo de peixe com batata-doce e farinha e foi-se deitar.
“Veio lá com os mubetas (kalundus) dele, terá que se respeitar”, disse para consigo mesma.
Por volta do meio-dia acordou, e sem se lavar, abalou para a praia. Informou aos colegas que durante uns tempos não iria ao mar, tinha um tratamento a fazer. Num outro bairro de Katola.
Estranharam, mas ninguém se pronunciou. Se tinha um tratamento a fazer, era porque necessário. E o facto de o não pretender fazer ali na zona, significava que queria esconder. Ou que do assunto não almejava ainda falar. Poderia ser grave, e não desejava pois, espantar, pensaram. Sem mais, abandonou-os e volveu a casa, onde preparou uma trouxa com roupa e abalou.
Maria Antónia assustou-se, não lhe conhecia outra companheira, era um dos raros maridos que só mantinha uma mulher. Dera-lhe cinco filhos, o segundo e os dois últimos morreram, ainda tinham idade para fazerem outros, estava certa que viriam.
O que se passava mais?
Condenara o facto de não lhe ter endereçado palavra, mas com os homens é assim, são os donos do ser e do estar, falam quando querem e como querem. Alguma coisa ocorrera no mar, estava certa. Tivera briga com alguém do grupo, teria que consultar o mestre timoneiro de imediato. Aflita, saiu sem sequer advertir em casa, mas as informações que recolheu não lhe serviram para nada. Que o marido tinha desmaiado, bebera muito, não comera e que não brigara com ninguém.
Foi uma semana de angústia para Maria Antónia. Aguardou, e cada dia de espera tornou-se um desespero. Partiu para a barra do Tanda à procura dele, já que era lá que tinha raízes o clã que se estendera até à pequena ilha na costa de Katola, onde viviam. Mas aí, dele igualmente ninguém sabia, ou não lho quiseram dizer. Voltou a casa por causa dos filhos e decidiu que o melhor era respeitar, não se arreliar muito, se ele partira é porque tinha uma razão, o dia em que achasse por bem, voltaria.
E de facto assim aconteceu. Como saíra, voltou. Taciturno e silencioso.
A ilha que se estende junto a Katola, tem origens nas areias que o rio Tanda transporta para o norte. É uma língua de areia extensa e coberta de coqueiros e arbustos vários. Suas praias são lindas e plenas de um pequeno molusco delicioso, que os nativos chamam de milonga (mabanga).
A pesca não só é o meio de subsistência, como a arte de vida dos ilhéus. Em tempos remotos também produziu uma concha, hoje desaparecida, que servia de moeda e pagava tributo ao reino do Congo, no que é hoje o norte de Inkuna. Para além da administração colonial, também fora governad por um Tobo (Soba), autoridade tradicional, escolhido em reunião de anciãos
Com a cultura portuguesa a minar cada vez mais os usos e costumes, a tradição foi-se diluindo e bastardeando e pouco restou, em termos de poder vero e real ao último Tobo. Sobrou um cerimonial cultural que, em dias de festa, emprestava o sabor tropical a uma Katola colonial.
Décadas após a independência, esse poder, ainda que indefinido, foi restaurado. A ilha tinha assim um Tobo de linhagem, homem simples, sereno e trabalhador.
Foi a ele que Virgílio se endereçou para solicitar audiência e relatar o que vira naquele dia no mar, e o que os tululas (kimbandas) o haviam aconselhado fazer, após as interpretações. Chegou, inclinou-se numa vénia de cortesia e respeito enquanto batia surdamente uma mão na outra, três vezes em antepassado compasso, após o que, segurou na mão do Tobo com as suas duas e levou-a à testa.
“Grande pai, alegro-me de te ver, e agradeço-te a oportunidade que me dás de te pôr o problema que vive comigo, já há quase três semanas”, disse, permanecendo semi-curvado.
Ao lado do Tobo encontravam-se dois velhos, certamente que seriam os mais velhos dos seus conselheiros, todos sentados em banquinhos, o do Tobo mais elevado. Por trás destes, uma fotografia antiga de seu pai e uma espada, embainhada, que a ele pertencera. Mais acima, o símbolo da república e a fotografia do presidente de Inkuna, tirada quando ainda era jovem. Numa outra parede, numa esteira afixada na parede da casa, duas azagaias e um rabo de boi, ofertados ao Tobo por visitantes. Pelo resto, a habitação era modestamente mobilada, um sofá, dois cadeirões e uma mesa de centro com um vaso de flores secas. Numa secretária ao fundo, um telefone e uma máquina de escrever. Era aqui que o Tobo recebia quem o procurasse, para tratar dos mais diversos assuntos e questões.
“Bom dia, mano Virgílio. Soube que estiveste fora, e que também encontraste problemas no mar, mas a família como está?”, perguntou-lhe, indicando um banquinho para se sentar.
“Estamos todos bem com a graça de Deus, só que aconteceu uma coisa estranha que me está a preocupar. Já fui consultar o tulula, e aconselhou-me a voltar ao mar para ver se o mesmo se repete. Caso isso aconteça, vou ter que agir por que senão meus outros dois filhos vão morrer”.
Em seguida, Virgílio relatou ao Tobo e aos anciãos conforme tudo ocorrera, o que sentira, bem como os conselhos que o tulula lhe dera. Os presentes ouviram com espanto aquele relato incrível, baixando várias vezes as cabeças em uníssono, e emitindo uns estalidos com a língua, precedidos de um “Eh-Eh!” de espanto.
Nunca na vida comum do mar, semelhante coisa se passara com qualquer um deles, e jamais relato tão maravilhoso se ouvira. Maravilhoso, não no sentido de lindo, mas sim de maravilhar, de espantar e assustar.
Finalmente, o grande Tobo afirmou que se isso se confirmasse, poderia estar ligado ás divindades das águas, ás ilandas, pois só elas se podiam mostrar assim, quer em forma de pessoa, de peixe, ou as duas misturadas, e sendo tanto homem como mulher, neste caso os
filhos falecidos de Virgílio. Havia pois que reconfirmar, ter a certeza, ás vezes poderia ter sido que ele tivesse bebido ou fumado de mais e, sem comer, tivesse sonhado tudo isso. De qualquer das maneiras, mesmo se tivesse sido sonho era um indício, já era um sinal, um recado que tanto poderia ser bom quanto mau. Teria, pois, que voltar ao mar e seguir os conselhos do tulula que visitara, homem avisado e sabedor, de fama conhecida de todos com vidas ligadas ao mar, lagoas e rios, enfim, ás águas. Mas que tivesse cuidado, se as piores das previsões se realizassem, não poderia haver mortes, isso ele jamais permitiria e aceitaria.
Mais reconfortado, Virgílio tirou da sacola que trazia uma garrafa de vinho e ofereceu-a ao Tobo. Os velhos sorriram largo sorriso, quando ordenou lá para dentro que trouxessem copos, o que foi feito de imediato. Após as oblações, beberam e Virgílio partiu satisfeito, aliviado, saíra-lhe um peso do coração.
Maria Antónia notou as mudadas mudanças no semblante do marido, irradiava a confiança que lhe conhecia, todavia Virgílio não lhe dirigiu qualquer palavra. Por contra, chamou um dos moleques e mandou avisar ao contramestre que logo retomaria a pesca, que não partissem sem ele. Comeu a massa com carne que a mulher lhe pusera à frente, e foi-se deitar por umas horas, deixando-a a olhá-lo pelo rabo esguio do olho, como que tentando adivinhar o que estava a acontecer.
Casados há cerca de catorze anos, tinham tido cinco filhos e a vida dela fora mais ou menos tranquila. Virgílio não era aventuroso nem de muitas festas, era homem apegado ao lar. Não fossem os óbitos de três das crianças, poder-se-iam considerar uma família abençoada por Deus.
Dois anos após o casamento nasceu-lhes o primeiro filho, Nauel, hoje com doze anos. Segui-se Alberto que faleceu em 1988, vítima de sarampo, o qual antes puxou Tristeza. A Tristeza, segui-se Pitinho que veio a falecer, por paludismo, em 1992. Este, meses antes da partida, puxa Luzia que não o querendo abandonar, a ele foi reunir-se, no mundo dos albinos, à idade de três anos, em 1995.
Essas mortes causaram muita celeuma nas famílias, houve acusações de ambas as partes,
todavia ninguém avançou contundências conclusivas. O casal dava-se bem, não existiam rivais e com a mortandade infantil a grassar por Inkuna, sobretudo por paludismo, a tradição ficava um tanto ou quanto abalada, pois nos lares de quem se podia suspeitar feitiços ou maledicências, ou nos que o tulula indicava por adivinhações, tragédias idênticas ocorriam com igual desproporção e à vontades. Hoje em dia, as crianças nasciam e partiam com uma espontaneidade assustadora. Há muito que as gentes desistiram de levar os familiares aos hospitais, por pura perda de tempo e de recursos Inkuna desprenhava-se dos vivos com apavorante velocidade. A face cavernosa da morte rondava o país, nos canos dos fuzis, no trovejar assassino das minas, na lambida picante do mosquito, na podridão das águas que escorrem em amoroso afago pelos lixos urbanos, na salubre invontade dos que, serenos e inamovíveis, observam do gélido alto o furor do cataclismo.


Oito meses decorreram dos acontecimentos, esgueirados no nascer e desfalecer da lua, oito vezes espigada e fenecida sobre as ondas do mar, quase sempre sereno. A ilanda, tranquila, há muito que não transformava sua ira ou descontentamento, em tempestades que os pescadores e suas famílias temiam. Caridosa, distribuíra peixe em abundância.
No lar de Virgílio, a vida voltara ao normal. Aos poucos, começou a endereçar a palavra a Maria Antónia e já se sentava com ela, na mornez da tardinha, a ver televisão, rodeados da molecada mais próxima. Depois, jantava um prato forte, agarrava no saco de tela e partia para a faina, para o mar, nunca ficando mais de um dia por a traineira não ter câmara frigorífica.
Acabara por descontrair-se, perdera a tensão altiva que o dominara por muito tempo. Sentiu-se arrependido dos pensamentos aleivosos que tivera para com a mulher, e das descontroladas ideias que nele mandaram senhoris. Afinal, tudo não fora mais de que um sonho, hoje duvidava até da visão que tivera e das emoções que experimentara. Parara de fumar liamba, conquanto tal tornasse as noites mais longas e árduas. A erva ajudava os pescadores a passar o tempo no mar e a diminuir o esforço da labuta. O peixe era ou não era, e quando não o era, a ansiedade da busca, o silêncio da expectativa, ou o simples passar das horas longas e escuras, eram melhor contornados com o acender da beata redentora. Tratava-se de um gesto cultural, tão simplesmente uma sintonização com as forças nocturnas da natureza. Um namoro do harmonioso correr da diligência com o tédio do tempo. O encontro do almejado com a reserva do possível. Eram as trevas a namorejar o compasso latejante do medo.
Como sempre, procurava o cardume com a lanterna. A noite estava escura, o céu limpo, pontilhado pelo que os antigos diziam ser pirilampos alumiando os caminhos para os espíritos errantes, aqueles dos que haviam morrido em terras que não as suas, ocorridas há muito. Desde que os povos do norte desceram a África, atravessaram as florestas tropicais e ocuparam as vastas regiões de savanas, a sul do Equador até ao trópico de Capricórnio, escorraçando os autóctones.
Procurou pelo Cruzeiro do Sul, tomou nota do lado em que a costa se encontrava, e concentrou-se novamente na escuridão do mar profundo. Sentia que o peixe rondava fácil, não muito distante. Por duas vezes avistara os pequenos cardumes fugindo, sua fosforescência na crista das ondas que o casco da traineira produzia ao cortar as água. E por fim, o que ele tanto temera e acabara por esquecer, tornou a suceder. Sentiu o barco oscilar, como se sacudido por onda gigante e adamastora, agarrou-se à amurada com todas as forças, e viu a água rodopiar, envoltos por um remoinho que os ameaçava engolir até ás redondas profundezas do oceano. Virgílio gritou por Deus e pelos antepassados que se lembrava, suplicou a clemência da ilanda, mas tudo em vão. No ensurdecedor turbilhão, saltavam os peixes que há pouco tanto procurava e, no seu seio, os seres escarlates que já vira, os filhos idos para o que ele agora confirmava ser o mundo e a vida das águas, Alberto, Pitinho e Luzia. Alongavam os escamosos braços, rogavam que se juntasse a eles, se o não fizesse seus outros dois irmãos o fariam, estava escrito na linha da vida da mãe, cujas origens eram as águas.
Ao despertar, encontrou-se no leito do quarto de dormir do casal. À volta, uma série de anciãs, umas sentadas na cama, outras em esteiras no chão. Quando a velha Maria das Dores olhou para ele inadvertidamente, e viu dois olhos esbugalhados mirando-a, soltou um grito agudo e saiu do quarto a correr, logo seguida das outras.
Virgílio, assustado, de mente ainda lamacentamente nebulosa, tentou sentar-se na cama, todavia o corpo não correspondeu ao desejo. Há dois dias que desmaiara, e só não o deram por morto, por que viam e ouviam sua respiração, feito um qualquer nzumbi irrespeitoso. No dia em que o trouxeram, no rosto então sereno, não havia indicações de ter havido luta, ou sinal que contrariasse o que relataram. Contaram que se pusera a gritar, a balbuciar coisas que ninguém entendia, certamente palavreado das divindades aquáticas, tremendo violentamente agarrado à amuralha, e que, finalmente, acabara por perder os sentidos. Indicaram que já não estavam a gostar de o ter no mar, causava muita consternação e temores. O que verdadeiramente lhe acontecera ninguém conseguia explicar, haveria que aguardar.
Dali para diante, nunca mais o ouviram falar, a língua colara-se ao chão da boca, impenitente. Desistiu da pesca e, sem sair da ilha, começou a aprender o ofício de pedreiro. Andava pelas obras, fazia os serviços que lhe ordenavam, ficando parado ocasionalmente a olhar para o mar quando o podia avistar. Não era rara a ocasião em que um dos colegas, muito a contra gosto, tinha que o abanar, trazê-lo sacolejado de volta ao mundo da obra e da tarefa. Todos sabiam da estranha estória, os velhos conselheiros do Tobo haviam relatado à sua maneira, que tivera visões no mar, e que vira a ilanda por duas vezes.
Recolhia cedo a casa, os filhos e outras crianças nem ousavam falar na sua presença, tão estranho parecia. A família começou a evitá-lo. A esposa parara de dormir no leito comum, repartia a pequena cama de Tristeza, ambas emaranhadas em receios e desconfianças.
Sentava-se, sozinho, num velho cadeirão de napa na pequena varanda traseira da casa, até incertas horas da alta madrugada, à escuta. Intuía-se que esperava alguma coisa ou alguém, que tinha a certeza que viria, só que não sabia quando.
Uma noite, seriam uma e meia da madrugada, Virgílio levantou-se do cadeirão, silencioso, para não assustar o gato que há muito miava à porta da cozinha, no quintal. Por fim avistou-o. Um gato grande e branco, chorando miados estrídulos que faziam as pessoas encolherem-se nas camas suadas, com pensamentos que não ousavam falar. Muitas, esperavam até ouvir o vuvular (bungular) do feiticeiro nas portas ou nas paredes das casas, sabiam que quando assim acontecesse, o lugar estaria amaldiçoado, alguém teria mandado malefício. Nestes momentos a
mente humana sente profundamente a invariável culpa, culpa que esculpe fundo no ventre do coração os calores do inferno e do medo ancestral.
Por isso ficaram aliviadas quando os miados do gato pararam, e puderam enfim dormir apaziguadas e poupadas.
Na manhã seguinte, ante o espanto incrível de todos, Virgílio foi preso, acusado de ter assassinado a facadas sua consorte porque, como ele contara à polícia, quando avistara o enorme gato branco, atiçado, miando miados esdrúxulos aos rebordos do telhado da casa, atirara-lhe um balde de água, tendo-se imediatamente transformado na esposa. Que vissem se não estava molhada, se não estava molhado o trajecto da porta da cozinha no quintal, ao quarto do casal onde se refugiara!...
Os comentários foram vários e díspares. Os grupos formaram-se de acordo com a crença ou descrença sempre duvidosa dos presentes. As mais incríveis possibilidades foram enumeradas, os “eu já adescunfiava” ouviam-se por todo o lado e, por fim, para não ser queimado, a polícia teve que retirar a pressas o corpo molhado de Maria Antónia.
Só quem não é de Katola e de Inkuna, é que desconhece que o gato só é gato durante o dia, à noite vira feiticeiro que vai assustar, ou colocar azares nas casas das pessoas.
Olhassem para ele, que perdera três filhos, quando afinal fora a mãe quem os comera, a Alberto, a Pitinho e a Luzia.
Maria Antónia ainda lhe implorara que não a matasse, todavia não aquiesceu.
O que estava feito estava feito.

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