quinta-feira, 9 de julho de 2009

ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS


HUMANIDADES


(PRIMEIRO TABLEAU)


O PARAÍSO

Na cena encontram-se três caixões fechados, mas bem ventilados. Um pintado de azul-marinho brilhante, outro de verde vivo brilhante, e o terceiro de amarelo vivo brilhante. Nas tampas, motivos coloridos pintados.

A colocação dos mesmos será, respectivamente, ao lado esquerdo traseiro do palco, ao centro frente e ao lado direito meia-cena. Entre estes dois últimos, por trás, uma árvore com uma escada que permite ao actor empoleirar-se nela (o actor nunca será visível ao público, quando na árvore).

No lado esquerdo, ou direito, frente, de modo a não encobrir o caixão branco, uma bicicleta colorida, fixa, mas que permite ser pedalada in situ.

A cena deverá apresentar-se suja, coberta de papéis, trapos, etc., todavia de modo a conseguir-se a sua remoção sem muitos problemas ou perda de tempo.

Uma luz de néon que acende e apaga, enquadra uma placa na qual se lê “PARAÍSO” , colocada em qualquer sítio da cena, mas que seja vista de todo o público.

PERSONAGENS PRINCIPAIS

TARA – Ocupante do caixão verde

PIRO – Ocupante do caixão azul

KIRO – Ocupante do caixão amarelo

NIRO – Ocupante da bicicleta

CIRO – Ocupante da árvore

Corredores (3 ou 4, conforme o espaço)

Dançarinos (as)


No início da peça, o palco encontra-se numa semi-penumbra, e os reflectores que incidem sobre os caixões e a bicicleta deverão estar gelatinados com as cores dos mesmos. Existem ainda duas lâmpadas estroboscópicas (flash lamps).

TARA, que está deitada no caixão verde, veste um colante negro todo esburacado, por cima do qual coloca uma saia de ballet amarelo vivo. Nos pés, botas pretas militares de número exagerado, atacadores brancos desapertados e com pequenas campainhas ou chocalhos (que não façam muito barulho) amarrados. Na cabeça, uma vasta e comprida cabeleira, feita de corda de sisal desfiada, azul claro brilhante. Seu rosto está horrorosamente pintado.

CIRO, que está sentado no seio da árvore, usa uma muleta rudimentar feita de um tronco. Veste calções bermudas grandes e largos e encontra-se descalço, porém com os pés pintados até aos tornozelos, de cores diferentes. Tem o mesmo tipo de cabeleira de tara, todavia multicolorida. O rosto está pintado metade branco e metade preto, com os olhos pintados das mesmas cores, porém inversamente.

NIRO, está sentado adormecido na bicicleta, veste um casacão negro longo e todo remendado, um calção com uma perna visivelmente maior do que a outra e calça ténis pretos com meias encarnadas. O seu rosto não está pintado, mas usa igualmente o tipo de cabeleira já descrita, cor-de-rosa brilhante, com um chapéu que é a metade superior do invólucro plástico de um garrafão de vinho.

PIRO, que inicialmente se encontra fora de cena, veste uma enorme camisa de noite feminina, a três cores horizontais e apertada nos tornozelos, andando, pois, com passos miudinhos. Calça sapatos de cores e modelos diferentes. A cabeleira é similar ás dos outros.

KIRO, que está, como Tara, deitado no caixão tapado, traja somente cuecas e calça enormes barbatanas de nado. Quando sair do caixão, trás pendurado no braço direito um guarda-chuva, preto, clássico. Na cabeça, como os outros, uma cabeleira laranja vivo.

Os corredores de bicicleta estarão vestidos todos de fato e gravata e sempre que atravessarem a cena, fá-lo-ão com grande alarido e confusão, a não ser quando especificado. O resto das personagens, à medida que forem aparecendo, será descrito o seu trajar.

Assim que os primeiros espectadores estiverem sentados, os corredores dão a volta ao estrado de madeira, da direita para a esquerda. Alguns cinco minutos após, retornam no sentido inverso e não necessariamente na mesma ordem de colocação. Esta acção repete-se, de cinco em cinco minutos, até o público estar sentado e completo.

Ouve-se então um som electrónico agudo, com fundo de tambores (batuques) e de grunhidos de porco, com ritmo estudado. A iluminação geral sobe um pouco, todavia sempre sombria.

Entra em cena um pequeno grupo de dança tradicional. O plano sonoro, umas vezes acentua o batuque, outras o grunhido dos porcos, outras ainda, o som agudo electrónico. Dançam.

Sai o grupo de dança.

Como fundo sonoro, restam os grunhidos de porco, de maneira o mais rítmica possível.

A iluminação baixa para a penumbra anterior.
As flash lamps começam a funcionar.

Ao ritmo do grunhir de porcos, passa um casal de jovens mutilados em animada conversa muda. De vez em quando param e esgrimem ferozmente as muletas, depois dão um leve e ruidoso beijo nos lábios e continuam a conversa, até darem por completo a volta ao tablado. Por essa altura o grunhir de porcos terá sido substituído pelos tambores (batuques), cujo volume foi aumentado bastante. Quando acabarem, apagam-se todas as luzes, a sala fica na escuridão, o som dos batuques desaparecendo gradualmente até ao silêncio total. Ouve-se, depois, um burro a zurrar, três vezes.

A cena é então iluminada uniformemente, todavia ainda luz baixa.
Passam os corredores, na confusão de sempre, após o que, Tara, atira estrondosamente com a tampa do seu caixão para o lado, sentando-se. Hirta, olha vigorosamente para um lado, depois para o outro, para cima, para baixo.

TARA
(Fazendo um esgar, grita estridente) “Cucu... cucu... cucu” (Iluminação sobe)

NIRO
(Acorda sobressaltado, ergue-se e olha para Tara) “HEIM?!... OUTRA VEZ?!... (zangado consigo mesmo) Oh meu Deus, estou novamente atrasado!... (tira do bolso do casacão um relógio despertador grande dos antigos, que consulta. Após, começa a pedalar furiosamente)... Sempre a mesma droga, agora nunca mais os alcançarei!... (vira-se para Tara)...já passaram há muito?... (vai-se desanimando e paulatinamente para de pedalar)... Nunca mais os alcançarei, quem me mandou ser funcionário público... nunca os alcançarei, nunca... (resume à posição anterior, dormindo)... Nunca!”

Tara salta atabalhoadamente para fora do caixão e retira dele um espanador, com o qual procede à limpeza de si própria e, depois, do exterior do caixão.
De perfil para o público, dobra-se, sem vergar os joelhos, em ângulo recto, para limpar o interior.

Kiro abre sub-repticiamente o seu caixão, vendo-se a cabeça a aparecer milimetricamente. Silencioso, sai e dirige-se em bicos dos pés a Tara, tremendo de ansiedade. Agarra-a por trás, levanta-lhe a saia e, como se de cães se tratassem, faz-lhe ruidoso e rápido amor. Tara actua como se nada tivesse sentido ou notado, cantarolando, nas lides caseiras. Caso mude de lugar, no acto, ele vai atrás, colado. Quando termina, Kiro sacode os seus trajes, ajeita os dela, e dirige-se para Niro.

Tara continuará a limpar, incluso a árvore, a bicicleta e o ciclista, etc.

Chegado a Niro, Kiro observa-o cuidadosamente, dá uma volta completa à roda da bicicleta e, por fim, espeta-lhe uma sonora bofetada. Vendo que o mesmo não reage, volta ao caixão e deita-se nele, deixando a tampa aberta.
Entram novamente os corredores, uns por um lado, outros por outros, mas saindo todos pelo mesmo sítio.

Quando desaparecer o último, entra pelo lado esquerdo da cena Piro, empurrando um velho e decrépito carrinho de bebé com rodas todas de tamanhos e material diferentes. No carrinho, um enorme boneco chimpanzé que ele retira e deposita, com desvelo e carinho paternais, encostado à árvore. Retira igualmente uma vassoura de mateba e procede à limpeza metódica da cena, depositando todo o lixo no carro. Em seguida conduz o mesmo até ao seu caixão, abre-o e atira para lá toda a tralha. Depois deita-se nele e tapa-o.

CIRO
(No cimo da árvore, grita, chamando) “Olhem aí!... (espera)...Oh gentes, estais a ouvir-me?... Olhem aí, algum de vós por acaso sabe o tamanho do raio da circunferência de um ovo de avestruz... (pausa)...ou o tamanho exacto dos tomates do padre Inácio?”

PIRO
(De dentro do caixão) “Ovo de avestruz?!... Falaste em ovo de avestruz?...Olha, se me lembro correctamente, o último que existiu antes do mundo acabar tinha exactamente 22.6 centímetros de raio de circunferência. Recordo-me como se fosse ainda hoje, por causa da chuva ácida que caiu durante dez anos consecutivos no deserto do Namibe, a sua frágil casca era azul-escuro... Era lindo e, sabem, foi o último ovo que o último Khoi-saan comeu. Desintegraram-se ambos ao mesmo tempo.”

KIRO
(Sentado, professoral) “Vocês falam do avestruz como se realmente tivessem conhecido algum. É preciso muita lata!... O meu bisavô, ainda era eu criança vejam só, o meu bisavô contava-me, para me adormecer, que o seu avô uma vez tinha ouvido o pai dele relatar que o seu avô sabia que o avô dele tinha visto uma fotografia de um avestruz, tirada pelo trisavô do seu bisavô quando jovem... (ligeira pausa, durante a qual a árvore é sacudida e todos largam uma gargalhada)... Pois é como vos digo! Contava-me então o meu bisavô, para me adormecer, que o seu avô, que sabia pelo trisavô do bisavô dele, da fotografia de um avestruz tirada pelo jovem trisavô do avô do pai do meu avô, que a tal ave tinha um pescoço muito comprido que servia para engolir as verdades que todos falavam e que os outros não queriam que fossem ouvidas ou conhecidas. Segundo os relatos antigos dos autóctones, o coitado do meu antepassado foi por esse motivo marginalizado para o deserto, nunca tendo, porem, conseguido acabar a travessia. Mas por vingança divina, sem dificuldade alguma os seus detractores aprenderam com o avestruz a enfiarem a cabeça na areia quando não quisessem ver os males que originavam”

CIRO
(Gritando) “22.6 centímetros disseste?... (ansioso) estás absolutamente certo disso?... Olha que a medida é fundamental para os meus cálculos, tenho de ter a certeza absoluta. Não vá ser o não ser ser e o ser não ser, para que me saia tudo errado! É pois vital que eu saiba ao certo. (Passam dois avestruzes, a gargalhar estrídulamente, sendo caçadas por dois caçadores aos tiros, seguidos de um tocador de hungo, de tanga e arco com flechas).

PIRO
(Abre o caixão, todavia permanece deitado) “Nunca quiseste acreditar no que os outros te dizem, sempre com essa maldita dúvida existencial... (aborrecido) Se te digo que são exactamente 22.6 centímetros é porque o são. Não são 22.5 ou 22.7, percebes?... (enfático) Eu sei que são 22.6 centímetros porque foram medidos cientificamente. Agoraaaaa... quanto ao padre Ináciooooo!...”

CIRO
(Corta, conciliatório) “Está bem, está bem... não vale a pena zangarem-se por tão pouco. E isso significa que 22.6 centímetros vezes 6 são...”

PIRO
(Zangado interrompe) “Ora gaita, lá vão vocês começar de novo! Caramba, mil vezes caramba, uma pessoa nunca pode ter uma conversa inteligente neste local... (deita-se no caixão, e continua a falar) Digam-me lá a diferença que faz um avestruz, uma coisa que nós nem sequer sabemos o que era não fosse pelo relato do antepassado daquele energúmeno que falou há pouco (pausa). Há quantos milénios vivemos na droga deste sítio a que chamam Paraíso? Não tivessem sido as greves que fizemos ao fim dos quinhentos anos, ainda hoje estaríamos a tocar harpa sentados em nuvens. Mas do que nos serviu tudo isso? Transferiram-nos para outro departamento celestial com a conversa que íamos ter nova e melhor vida, e aqui estamos nós, a falar há milénios e sem nunca chagarmos a conclusão alguma. Avestruzes, qual avestruzes!... Agora, se me perguntarem sobre os tomates do padre Inácio, isso já é o nosso dia a dia...”

KIRO
(Galhofeiro) “Olha, olha! sua excelência quer ter conversas inteligentes!... (Ri) É pena que aquela atrasada mental da Tara esteja tão ocupada, senão ela dava-te a conversa inteligente. Que conversa inteligente vais ter se nem sequer sabes o que é a inteligência? Foste a alguma escola, tiveste aulas ou professores? Felizmente que aqui não necessitamos de essas aberrações, quem quiser conversas inteligentes que vá para o inferno. Alguma vez ouviste falar do mestre Tamoda, ouviste?..”

CIRO
(Não se contem mais) “E o que tem isso a ver com os ovos de avestruz?!...”

KIRO
“Tem muito! Aliás tem tudo, porque se não fosse o saber-se escrever, não fosse o relato apócrifo no papel, a gravura no nitrato de prata dos laboratórios, nunca hoje saberíamos do avestruz (pausa). Por acaso tens algum sobrevivente deles aqui no Paraíso? (pausa)
NÃO!... Nada, só loucos e pseudo intelectuais, que ao fundo é o mesmo. O resto está no inferno, olha lá para baixo e vê como essa cambada goza... carros, mulheres, diamantes, champanhe, viagens ao purgatório quando e como querem e nós aqui a discutirmos não seio o que, todos feitos loucos. E porquê?...Porque somos os detentores da sabedoria! Bem nos avisaram toma cuidado que a sabedoria não é aqui ainda chamada. Terão que esperar outros tantos séculos...
(Baixa as calças e aponta para uma das nádegas, com uma impressão de uma bota) Estás a ver isto aqui, esta marca? É a marca da bota do conhecimento, do pecado original, com o qual fomos ferrados para todo o sempre. (Irado) E é por nos terem pontapeado com a sabedoria no traseiro, que por lá também saem todos os pensamentos que engolimos... (pausa) Por acaso já pensaram o que tudo isso tem a ver com ovos de avestruz?”


PIRO
(Abre o caixão e senta-se) “Já sei, já sei quem foi o escritor! (Bate as palmas de contente, infantil) Foi o Silva Covas, o Silva Covas... Só poderá ter sido ele, é dele esse estilo inconfundível, aquele traçado luminoso da pena arguta e rectilínea... (Deita-se) Ah, Silva Covas, só tu mexes comigo!...

CIRO
(Desdenhoso) “Sois todos uns perfeitos idiotas, não sabeis nada de ovos de avestruz nem de escritores, isto sem falar no padre Inácio... Idiotas! Não viram logo que esse estilo é do inconfundível Uanhenga Xitu?... (com total desdém) HUMMM!!!... Silva Covas!... Toca é de dormir suas bestas ignaras, até parecem da oposição!”

A iluminação decresce lentamente, mantendo-se o projector que incide sobre o caixão de Tara, para o qual se dirige e dentro do qual se senta.
Começa a música do Dioniso Rocha “Eh pemba”, ao ritmo da qual Tara “desfolhará” o espanador. Entram novamente as bailarinas tradicionais que dançam a música.

TARA
(Depenando o espanador ao ritmo da música) “Mal me quer... bem me quer... muito... pouco... nada... (isto até ao fim. Farta-se a atira com o espanador fora. Espreguiça-se e, depois, como no início, grita) Cucu...cucu...cucu.”

A iluminação geral sobe repentinamente e a cena dos corredores, Niro, etc. repete-se, com as bailarinas ainda dançando a mesma música e saindo com eles.

Piro atira a tampa do seu caixão para o lado e senta-se de chávena de chá na mão. Muito fraco, ouve-se o uivar de um cão, logo seguido de um rap, em português. Entram um padre negro de batina branca e uma branca mumuíla, seios desnudos, a dançar a música por uns instantes. Depois saem e acaba o rap

PIRO
(Após a saída do par) “E olhem para estes, o que quererão mostrar com isso, ainda fingem não saber que a religião acabou? Paraíso é paraíso, aqui quem manda manda e quem manda é o chefe. Único e absoluto, omnipresente e omnisciente. Parece que ninguém mais se recorda quando o rei ia nu, trajado de suas sedas invisíveis... ou da forma do Mundo... (triste) ninguém mais se recorda da lua...!”

CIRO
(Do cimo da árvore) “Como poderemos recordar o que não existe? Nem nos recordamos que vivemos num meteorito perdido no espaço das nossas mentes, feitos continuadores do nada.”

KIRO
(Ofendido) “O rei ia nu?... O rei ia nu?... Se ia trajado de seda invisível como é que ia nu?”
TARA
“Sois uns ignorantes, há milénios que viajamos nesta pedra e nunca vos serviu para nada, nem que fosse para tomar consciência do facto.”

KIRO
“É bom de o dizer mas não de o fazer. Com essa tua mania de malmequer, bem-me-quer, talvez-me-quer, acabaste com todas as poucas flores que por aqui havia e nem sequer se consegue agora limpar o pó. Não sabemos quem te possa bem-ou-mal-te-querer quando isso nem sequer existe.”

PIRO
“Não existe? Claro que existe, não existe o pó?”

TARA
(Sai do caixão e dá, atabalhoadamente, uns tantos passos de dança) “De facto errou-se. Errou-se na criação (pausa). No passado longínquo, mais longínquo ainda que o do avestruz, constava que havia um ser supremo que criara, à sua imagem, o ser humano, só que por estar sozinho não sabia que a imagem estava errada.”

PIRO
(Sai do caixão e deita a correr à volta da cena, parando junto a Tara) “Muito bem, quem errou então? O ser humano errou porque foi feito errado, ou o ser supremo errou porque ele próprio estava errado, como se num espelho defeituoso?”
CIRO
(Do cimo da árvore) “Porque falais de coisas que não sabeis? Parai com essa especulação, já que não passa de mera especulação. As imagens a que fazeis referência nada mais são do que fantasmas, sombras (pausa. Muda de assunto). Em termos concretos, por acaso algum de vós sabe a medida exacta do raio de um ovo de avestruz, sabe?!... Pode-vos parecer uma questão simples e não existencial e sois incapazes de me dar uma resposta, porém divagais sobre questões que acreditais transcendentais. Que interessa quem errou ou não, que a imagem era imperfeita devido ao borrão inicial?”

KIRO
“É evidente que não interessa!... o facto de a máquina ter errado e o maquinista ter-se aventurado sem a respectiva licença de condução, nada justifica, não tem a ver com o presente.” (vai para o caixão).

TARA
(Desdenhosa, dirige-se para a árvore) “Querem observar quão frágil é a filosofia deste senhor?... Desejam conhecer o que saiu errado na criação? Querem?... A resposta está à nossa frente, aliás sempre esteve. Não fosse a nova leveza, a vossa inconstância e inconsistência, há muito que teríeis visto o que desfila sem interrupção perante vós...” (Sacode a árvore e Ciro cai dela).

CIRO
(Assustado, levanta-se, agarra na muleta e aos pulos vai refugiar-se na última fila dos espectadores, sempre aos guinchos) “Paspalhona!... paspalhões!... Vejam como se comportam, suas bestas asininas!”

TARA
(Bate as palmas de contente, salta e dança) “Viram?... viram?... Viram como é que a máquina errou o maquinista? O que vale então o ser supremo ou a sua criação?... (vai buscá-lo e leva-o, a pontapés e bofetadas até à árvore para a qual ele trepa de imediato, desaparecendo. Volta ao seu caixão).

CIRO
(Do cimo da árvore) “Raios de enxofre haverão de cair sobre as vossas cabeças!...”
PIRO
(Irradiando alegria e satisfação) “Como adoro testemunhar estas manifestações... Que coisa mais linda!... Grita-se aqui, insulta-se ali, creio que os antigos as chamavam de Assembleia Nacional... Que lindo, que alegria... bem-me-quer, malmequer, muito, pouco, nada... (Desata à gargalhada)... Muito, pouco nada!...”

(Kiro salta para fora do caixão e executa vários e complicados exercícios de ginástica. Tara, sai igualmente e vai-se sentar ao lado do boneco chimpanzé. Após uns instantes, tira para fora um dos seios, todo pintado de bolas visíveis, e dá de mamar ao mesmo).

CIRO
(Fala, enfático e enamorado, do cimo da árvore) “O que sabem eles de Assembleias Nacionais? Sempre viveram suas vidas entregues a ilusões, nem coragem conseguiram para olhar romanticamente, para além do paraíso em que julgam viver (pausa)... mas tu, oh amada, tu, conheço-te bem e profundo.
Oh! Doce flor corrosiva...
Oh! Nitroglicerina querida...
Pudera eu resistir-te! Oh Nitroglicerina, deixa-me ser o único, o único, o único... O ÚNICOOOO!... (A cada único, ouve-se a descarga de um autoclismo.)
(Com rancor) Sabes quanto odeio todos que, nos laboratórios em que vagueias, teus favores volúveis solicitam sem cessar...
Aqueles que te guiam com suas porcas mãos nos tubos de ensaio e neles te misturam a novos amantes, sim, esses a quem tu chamas de cientistas queridos, que te manipulam, que contigo mexem como ninguém, sem que dês conta que são meros inventores da morte atómica, criadores da destruição do mundo. Os iniciadores do nosso paraíso. Pensas que não sei do teu namoro com o bicarbonato de sódio?!... Nega, NEGA-ME ISSO!...
(Com escárnio) Tens a noção do que te acontecerá quando te consumarem nessa perigosa união?... Os teus cientistas certamente que nada te informaram, pois faço-o eu, vão ser um BUUUMMM!...”

Logo que Ciro diga Buummm, desligam-se as luzes e, de modo a assustar toda a gente, ouve-se uma estrondosa explosão, cuja reverberação se manterá por algum tempo. No fim, entende-se o cri-cri dum grilo e o coaxar de sapos.

Durante a explosão, no escuro, todos regressaram aos seus caixões, tapando-os. Paulatinamente as luzes sobem para uma semi penumbra, os reflectores dos caixões e da bicicleta acentuando-os.

Passam outra vez o padre e a mumuila a dançar uma kabetula.

Novamente entram os corredores. Um deles, perdido, choca violentamente contra a árvore de Ciro, que cai com espalhafato. O corredor recompõe, agarra na bicicleta, põe a mesma ao ombro e sai coxeando.

Ciro, com dignidade e aprumo, levanta-se, sacode a roupa, desconfiado olha para todos os lados, abana a cabeça com desdém e sobe para a árvore, desaparecendo).

TARA
(Abre o caixão com estardalhaço, bate as palmas de contente, freneticamente) “Bis, bis... oh que lindo, bis... que lindoooooo!... Bis, bis...”


KIRO
(Que igualmente já abrira o caixão, salta e recomeça os exercícios. Depois, bangão, dirige-se a Tara) “Gostaste?... Gostaste? Olha que sei fazer coisas mais lindas (faz o pino e duas ou três piruetas)... Viste, viste?...”

PIRO
(Que entretanto saíra do caixão, dirige-se para Kiro e observa-o com atenção. Sarcástico) “As palmas não eram para ti, meu idiota, ela festejava a dignidade de Ciro, (com orgulho aponta para a árvore) não reparaste a sua compostura perante as vicissitudes da vida? Não notaste o garbo do passo quando se dirigiu para a árvore?... (volta-lhe as costas com desprezo) galifão!”

TARA
(Dirige-se ao caixão de Niro onde executa uma rápida dança desarticulada, seguindo até Niro) Foste o único a perceber a loucura da sanidade mental, (aponta para o público) nem esses todos que estão para aí a fingir que nos entendem viram que és o rei louco do encantado mundo da percepção e do caos, (Acaricia Niro) Oh meu anjo das trevas amenas, como sofreste lúcido nas paradas da trapaça e do orgulho dos prestidigitadores da consciência, foste a gota de água a secar no oceano da presunção de estrelas grávidas de verdades em máscaras de lábios risonhos” (Recompõe a roupa e cabeleira de Niro, dirige-se à árvore e dá-lhe uma forte abanadela).

CIRO
(Cai da árvore, rola no chão, levanta-se irado) “Para que mais foi isso outra vez? Já não se consegue viver em paz neste paraíso?”

PIRO
Paz, para que a queres? A paz não serve as minorias que dela não vivem, aliás não foi assim que roubaste os ovos de avestruz, não foi assim que o padre Inácio perdeu os tomates que todos procuramos?”

CIRO
“Santíssima jinguba, por que será que só dizes asneiras? Foi então com a paz que o padre Inácio perdeu os tomates? Ou foi porque se pôs a armar em salvador da humanidade e afirmou que a bomba atómica nunca fora inventada?”

TARA
“Ai é? Ou foi porque começou a pregar publicamente que Jesus Cristo vendeu os aviões de guerra a S. Pedro, e depois os dois formaram uma companhia de fretes aéreos para transportar anjinhos daqui para ali, e nunca de ali para aqui? Já te indagaste porque passam a vida esses das bicicletas à procura da eterna rolha que julgam ser o seu bem estar?”
CIRO
“Vox populi!... vox populi, nem sempre vox Dei.”

TARA
(Arreliada) “Cala a boca que ainda acordas o Niro. (Sarcástica) Ainda não te fartaste de chocar ovos de avestruz? A vida a passar por ti a chocares ovos de avestruz!”

CIRO
(Indignado) “Ovos de avestruz? Chocar ovos de avestruz?”

TARA
(Arreliadora) “Sim, ovos de avestruz, ou pensas que não sei? Não é porque te isoles aí no cimo da árvore que me enganas. Só que não te percebo, a espécie já desapareceu há milénios e ao chocares um fóssil o que pretendes, ser um deus?”

NIRO
(Acorda bruscamente) “Quem chamou por mim? Quem chamou por mim? (olha à sua volta, não obtém resposta e adormece novamente).

CIRO
(Conciliador) “Não ligues para o que esse louco está a dizer, e olha, (aponta) vivo lá em cima não porque, como insinuas, esteja a chocar ovos de avestruz para me tornar num deus, mas sim porque de lá o mundo me parece melhor e mais fácil de engolir, mais fluido. Não há cores, não há nada que me preocupe, só um horizonte permanente...
(Zangado) E ao que parece nem isso me deixarás ter porque te empenhas em destruir o meu sossego com tuas intrigas avescas (imita três vezes um galo a cantar, sacudindo as asas. Depois, vira-lhe as costas, desdenhoso) Vou-me embora!... (dá uns três passos, pára e vira-se para Tara outra vez) desejas roubar-me o horizonte, chamas-me nomes (zangado) e acusas-me de querer ser um deus...
Pois podes crer que o inferno, o fogo eterno, não existe. Lá de cima observo-te, ou julgas que não? Sempre com essa mania de quereres iluminar o iniluminável, como os que sentem a necessidade de limpar o cu mesmo sem terem defecado...
Refugias-te no útero cósmico e pretendes assumir as loucuras do mundo, feita puta esotérica...”
TARA
(Preocupada e ansiosa) “Cala-te... cala-te, só dizes sandices (tira uma chucha para fora e mostra-lhe). Já viste alguma puta com chuchas, já?...
Não sabes que nenhuma puta tem chuchas?...
Aliás nem poderias saber, porque sou a única mulher no paraíso. Todos os outros fantasmas que por aí passam são meras ilusões do homem de barro. A tua ignorância horroriza-me, só dizes asneiras.”

CIRO
(Colérico) “Só digo asneiras? Pois fica aí com os teus deuses e cabandas porque vou-me embora para o círculo. Nunca bebi sacrifícios como tu, julgas que não te observava, masturbadora de ladrões!...” (Sai e empurra consigo, para fora de cena, a árvore).

Nesse preciso momento houve-se o gritar de um porco, quando a ser morto pela faca. Tara atira-lhe a língua de fora, vira-se e mostra-lhe o rabo. Em seguida dirige-se a Niro e torna-lhe a recompor a roupa. Daí vai para o seu caixão, deita-se e tapa-o.

Todos os outros fazem o mesmo.

A luminosidade decresce até a uma quase escuridão.

Organizados e silenciosos, todavia mimicando a algazarra de sempre, os corredores atravessam, agora descidos de suas bicicletas. O último, trás uma grande rolha entre as pernas, simbolicamente enfiada. A cena e a sala ficam na escuridão completa. Muito de longe, apercebe-se o “cucú... cucú” de Tara.



BAIXAM AS CORTINAS



FIM




(SEGUNDO TABLEAU)

A CAIXA



PERSONAGENS PRINCIPAIS

HONESTO JAMORREU – Locutor

SÓNIA SEVIRA - Locutora

APRESENTADOR

CANGALHEIRO

OUTROS


No palco, um enorme televisor, a caixa. Com dimensões mínimas de 345cm X 250cm (poderá ser alterado), sobre um estrado que representa a mesa.

A todo o comprimento do écran, num pano que enrola e desenrola sobre si mesmo (ver o mecanismo mais fácil), pintados, o logotipo da estação e, mais tarde os anúncios publicitários.

No início ver-se-á o logotipo da estação emissora:


As cores dos anúncios, bem como os trajes dos bonecos, serão sempre vivas, berrantes, exageradas e de traço nítido.

Os bonecos serão grandes e ridículos. Existirá um “público” que serão os actores excedentes do “PARAÍSO”, sentados em semi círculo.

As luzes, ao subirem, revelam a caixa, o televisor, o seu logotipo e o público sentado conforme já descrito. Ouve-se o genérico da estação emissora, após o qual entra o apresentador, um enorme porco-espinho, que se senta atrás da mesa (que poderá ser retirada quando necessário) e faz a abertura da programação.

APRESENTADOR
“Minhas senhoras e meus senhores, muito boa noite. A CAIXA DE EMBURRECIMENTO COLECTIVO, esta vossa e sempre amigável estação televisiva, tem o prazer de dar início a mais um programa descartável, referente ao dia (Dar a data). Assim, os caros telespectadores poderão ver de imediato a nossa página publicitária, na qual vos apresentamos os mais inebriantes e os mais parvos anúncios, logo seguida da página para os mais pequenos, a dos desenhos mais do que desanimados.
Depois, para os amantes incondicionais desta bela cidade à beira-mar, Sónia Sevira apresentará o programa “Raios Te Partam Luanda”, com exclusivo patrocínio da paciência dos munícipes.
Ás dezanove e trinta terão o desporto, em cuja página internacional apresentamos a aliciante partida de futebol, transmitida em diferido e realizada o mês passado, entre o ASA e o Atlético Petróleos de Luanda, exclusividade das linhas aéreas nacionais, a famosa “Nunca Falha, Chega Quando Chega e Passem Bem”.
Segue-se o bloco noticioso, onde mais uma vez vos apresentamos as notícias nacionais e internacionais de anteontem.
Ás vinte e uma, mais uma página publicitária, para os resistentes à insónia, seguida da emocionantíssima e cada vez mais ininteligível porcaria de novela local, “A Verdadeira Vida do Beto das Vinhaças”, patrocinada por tudo quanto é vinho e cerveja neste país… Hoje no seu quinquagésimo capítulo. No episódio de mais logo, será que Dedaldino Xibode concretizará seus intentos escuros e dá o golpe na garina do mega empresário malangino Beto das Vinhaças, de férias em Portugal a tratar de assuntos brilhantes, para um conhecido político?...
A NÃO PERDER!... Tenham pois uma boa noite e queiram prestar atenção ao programa que segue (sai).

Enquanto sai, o logotipo da “CEC” é enrolado, para dar lugar ao da “PUBLICIDADE”, acompanhado da música introdutória atinente (a ser cantada, em caricatura, pelos actores).

Segundos depois o pano é novamente enrolado para revelar, como fundo, uma floresta tropical, com os sons que lhe são peculiares, e um fundo de tambores.

Entra um enorme chimpanzé aos pulos, percorre toda a cena a bater os punhos no peito e emitindo gritos terríveis.
Pode implicar coma audiência, sem agravos.
Bem visível, um sexo descomunal com duas pequenas campainhas amarradas à volta, como testículos que, com os pulos, retraem-se, por uma mola.
Por fim cala-se e acalma-se, encosta-se a um canto e fica a coçar os testículos por um largo tempo, olhando para as senhoras, com ocasionais grunhidos de prazer.

Pelo lado oposto, entram as duas senhoras em conversa.
Uma delas é toda espalhafatosa e está limpa. A outra tem a roupa suja e amarrotada.
Falam e riem muito, sem darem conta do bicho e este tão pouco delas.
Quando, finalmente, se concentra nelas, põe-se outra vez aos pulos, contente. Parte em corrida para elas, antes porém dando três voltas à cena.
As senhoras demonstram reacções de horror e de prazer, fazendo um espalhafato incrível.
A senhora limpa vai refugiar-se no seio dos espectadores, agarrando-se a um deles como protecção, sentada no seu colo.
O chimpanzé dirige a sua atenção para a que ficou na cena, a suja. Executa uma dança kabetula de alegria, dá dois enormes gritos e outros tantos murros no peito e agarra a senhora, agora aterrorizada, arrastando-a para fora de cena numa guerra incrível.

Faz-se, após, um curto silêncio e durante o qual só se ouve a senhora limpa, mão no peito, a arfar. Por fim acalma-se e, de onde está, sempre espalhafatosa e exagerada, fala.

SENHORA LIMPA
(Agora sorridente) “VIRAM?!... MAS VIRAM MESMO?!...QUE HORROOOR... (Levanta-se e começa o regresso à cena) Mas viram mesmo bem? Olhem, fiquei sem pio... Quem diria!... A minha melhor amiga, a ser agarrada assim!... Que horror!...
(Já em cena, vira-se para o público) Mas o principal, minhas senhoras, para que coisas como estas não vos aconteçam, é necessário que sejais modernas (da carteira tira um pequeno serrote com o qual penteia o cabelo).
A mulher moderna, a mulher desenvolta e emancipada nunca passeia pela selva sem ter a roupa lavada com Sabão Macaco, sabão que lava até a avòzinha e o periquito…Como viram, o sabão que faz a diferença (aponta para si, atira o serrote fora e sai)).

Ouve-se então um jingle a três vozes femininas:
“Sabão macaco, sabão macaco, sabão macacoooooo!
Não esqueçam amigas, sabão macaco é aquele... é a diferença!...”

Faz-se silêncio. Muito ligeiramente percebem-se os sons da floresta, bem como a voz em off da senhora suja levada pelo macaco.


SENHORA SUJA
(Risadinhas) “Ai chico, seu macaco, seu malandro (novas risadinhas). Está quietoooo, seu bicho... Oh xico, NÃO FAÇAS ISSOOOOO!... (risadas e gritinhos de prazer). Já te disse que não, para com isso bolas!... (Zangada) TIRA A MÃO DAÍ, GAITA!...

Pequena pausa após a qual ouve-se outra vez o jingle referente ao sabão.

“Sabão macaco, sabão macaco, sabão macacoooooo!
Não esqueçam amigas, sabão macaco é aquele... é a diferença!...”

As luzes apagam-se brevemente, sendo o pano enrolado para revelar uma farmácia moderna, identificada com o nome de “FARMÁCIA ATÉ QUE ENFIM”.

A música de fundo é alegre, viva, um zuk ou algo parecido. Entra um falo, quanto maior melhor, erecto e de cabeça encarnada luminosa com duas antenas que terminam em bolinhas igualmente luminosas, e usa óculos. Os testículos, cheios de pelos.

VOZ FEMININA OFF
(Muito autoritária) “Você aí, alto lá!... (o falo vira-se, olha para todos os lados para verificar se é a ele que se endereçam).
Sim, você! Tome cuidado com o que faz, veja lá onde se mete, não seja abelhudo e ande por aí a enfiar o nariz em qualquer buraco! Nunca ouviu falar na doença do século?!... (O falo, que estava erecto, verga-se logo).
Pois é amigo, não brinque com a sorte, proteja-se contra o Sida!...
(Entram duas mãos e enfiam um preservativo pelo falo abaixo. Tenta resistir, mas por fim cede). Pois então proteja-se, o seguro morreu de velho (Enfática), e as camisas RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA são a protecção que deseja...
Utilize Resistência Democrática e faça amor como o homem mais moderno e dinâmico... pronto para qualquer partida ou ocasião, sem o sentido do déjà vu!..
Siga o nosso conselho, use Resistência Democrática e proteja-se na cabeça, não deixe que lhe lixem o juízo! Use-as e abuse-as, são elásticas e acomodáveis” (O falo sai aos pulinhos, levado pelas duas mãos).

O pano enrola novamente para revelar uma agência funerária típica. A música de fundo é a apropriada. Entra o cangalheiro todo vestido de preto e com um abutre ao ombro. Coloca-se ao lado de um dos caixões e endereça-se ao público.

CANGALHEIRO
(Voz grave, séria e pausada) Meus amigos, vós aí na paz do vosso lar tranquilo, já pensastes no vosso futuro mais além?... Exacto, no Além, na eternidade (Acaricia o abutre)... Não deixeis a resolução dos vossos problemas pessoais, mesmo a íntimos. Vinde visitar-nos (Abre os braços com amor), cuidaremos de vós...
(Aponta para o espectador mais próximo) O senhor(a) aí, deixe que lhe mostremos o nosso desvelo e carinho. Não é uma promessa, é a marca de registo da melhor agência nacional (olha para o abutre e sorri), a AGÊNCIA MORTE FELIZ, onde morrer vai para além de um simples dever ou prazer... MORRER É UMA OBRIGAÇÃO!... (muda o abutre para o outro ombro, depois de lhe dar uns beijos sonoros no bico).
O nosso lema é morra amanhã e pague hoje... Parta alegre e confiante, não espere que os herdeiros o enterrem, porque à única coisa que enterrarão será o seu dinheiro. Em bares e vida fácil!... (Por breves momentos ouve-se um tango, no qual dança com o abutre. Tira uma pequena garrafa do bolso e dá uns tantos goles. Oferece a alguém e torna a metê-la no bolso).
Minhas senhoras, cavalheiros, não se acanhem, temos todos os modelos.
(Aponta de novo para alguém), É membro do comité central do seu partido?... Temos aquele modelo ali, uma cópia fiel do Mercedes Benz 280S, e enquanto não for desta para a melhor, poderá utilizá-lo para guardar os kwanzas, porque os dódós, estou seguro que já os guardou na Suíça.
(Aponta para outra pessoa) É deputado?... temos o modelo XL, mais condigno para as vossas citroenadas, não dê ouvidos aos invejosos, aqueles que o vêm com a vidoca feita. (Aponta) É dono(a) de lanchonete?... Olhe para esta maravilha de caixão, estilo contentor amachucado a cheirar a pincho torrado.
Na agência MORTE FELIZ temos tudo a seu gosto, faça já a sua reserva!... (ouve-se um jingle alegre, durante o qual o cangalheiro agarra o abutre e, desajeitadamente, marca o compasso da música batendo com ele no chão):



Somos casa de tradição
Agência Morte Feliz
Confie em nós de coração
Agência Morte Feliz
Estamos à sua espera
A sua morte feliz

As luzes apagam-se e quando forem reacesas ver-se-á de novo o logotipo CEC, com o respectivo indicativo. À mesa, o porco, o apresentador inicial.
Assoa-se na manga da roupa, com barulho.

APRESENTADOR
“Alô, alô criançada, alô-alô... chegou a hora do vosso programa. O momento (Assoa-se com as mãos, para o lado, sacudindo depois os dedos) desculpe... o momento que tantos desejais.
Eis aí miúdada, eles aí estão os vossos desenhos desanimados (Faz o gesto indicador com a mão. Não sai)

Entram o pato e o rato por lados opostos, mocas (de espuma) nas mãos. As meia-cena encontram-se e agridem-se mutuamente, de maneira alternada, nas respectivas cabeças.
PATO

(Bate) “Toma seu rato comunista!...”

RATO

(Bate) “Aiii!...Toma seu pato revisionista!...”

PATO

(Bate) “Aiii!... Toma seu rato trotsquista!...”

Esta cena repete-se várias vezes com “maoísta, marxista, albanês leninista, estalinista maoista, esquerdista fidelista, etc.”, até caírem exaustos para o lado, um nos braços do outro. Saem rastejando, todavia sempre a baterem-se.

Imediatamente após, entra Branca de Neve perseguida pelos sete anões, em louca e alegre confusão. Ela corre por todo o lado, até pelo meio dos espectadores, aos pulinhos e risadas, o mesmo fazendo os anões, que tentam beliscá-la, agarrá-la, apalpá-la, tudo isto com uma intenção sexual nítida.

BRANCA DE NEVE
(Como descrito) “Seus malandros!... Parem. Desistam, nunca me agarrarão!... Malandrotes, seus espertalhões!....Parem” (o apresentador começa a ficar irrequieto).

UM ANÃO
(Babando-se de desejo) “Branca de Neve, se te agarro, ai se te agarro!... Vem minha cabra, vem ao teu bode mal cheiroso!... (espirra e raspa os pés no chão, como um bode) há quanto tempo sonho com isso... se te apanho!...”

BRANCA DE NEVE
(Ri, goza) “Malandro, querias não é?!...” (passa pelo apresentador e faz-lhe uma festa fugidia)

OUTRO ANÃO
(Já cansado) “Isso não vale Branca de Neve, tens pernas maiores do que as nossas, isso não vale. (Arfando) Pára, gaita!... Dá lá uma oportunidade a um gajo, porra!... (grita para o apresentador que, de seguida, logo parte atrás dela) agarra, agarra-me essa fulana!”
OUTRO ANÃO
(Quase que a agarrando) “Cerquem-na por ali, cerquem-na por ali que ela hoje não escapa... (Ri de antecipado prazer) Quando te apanharmos vai ser o teu totoloto... (puxa um espectador pelo braço) venha, venha que a gaja é boa!...”

TODOS
(Excitadíssimos) “Agarrem-na, agarrem-na, hoje não se safa!...”

Uns momentos após tudo congela por uns segundos, antes de se apagarem por completo as luzes. Se por acaso o espectador também foi tentar apanhar Branca de Neve, fica lá onde estiver, ele que volte ao lugar. Saem todos, gira o pano e quando as luzes acenderem, vê-se novamente o logotipo CEC e, à mesa; Sónia Savira, (Tara) a locutora.

SÓNIA SAVIRA
(Faz um monte de caretas e esgares ao falar) “Minhas senhoras e meus senhores, queremos pedir desculpas, todavia, por um lamentável erro técnico estávamos a apresentar no programa infantil o filme didáctico de mais logo à noite para os adultos, Branca de Neve e as Sete Tesões.
Mais uma vez as nossas mais sinceras desculpas.
Dando, pois, continuação à programação, temos o famoso programa “Raios te Partam Luanda”, hoje na sua milionésima edição e apresentado por esta vossa amiga Sónia Savira, patrocinado por todos os governos provinciais desta capital, desde 1975.
Começamos com as imagens que relatam os factos do incrível acidente ocorrido ontem à noite na cativante Ilha de Luanda, junto ao Hotel Panorama... “

(Por trás dela, decorrerão todas as situações a apresentar, sempre visíveis para todo o público.)

Entram, por lados opostos, duas viaturas que chocam frontalmente. Os condutores saem e começam logo à batatada. Um, está nitidamente embriagado. A locutora levanta-se e dirige-se a um deles).
“Temos aqui a nosso lado os causadores deste acidente que felizmente parece não ter feito vítimas mortais. (Fala com o condutor sóbrio) O senhor, por favor... O senhor, quer contar para todos nós por suas próprias palavras o que realmente aconteceu?... Como se chama?”

CONDUTOR SÓBRIO
(Recompondo a roupa, ajusta o penteado e sorri para o público) “Eu me chamo senhor Quintino, mais conhecido por Zanga Mau, e vinha por ali (aponta) nas calmas a comer os meus pinchos e a chupar as minhas geladinhas, quando este senhor (aponta)... FILHO DA PUTA, te parto os cornos! Vinha fora de mão e me bateu! (lamenta-se) Olhe só, veja o meu carro, até parece que caiu naqueles buracos do Cazenga. Agora vou ter que fazer outra viagem nas Lundas... (vira-se para o outro) seu sacana, tens sorte de estar aqui na Caixa de Emburrecimento Colectivo, com a senhora Sónia Savira, senão te arrebentava com as fuças, ias ver como eu te fo...”

SÓNIA SÁVIRA
(Corta-lhe rápido a palavra) “Calma amigo, não disparate, não diga asneiras porque já chegam as minhas!... Calma!... Não lhe chega a namorada ferida a sangrar ali no carro?... (Leva-o até lá) Olhe, olhe todo o sangue que por ali vai (o condutor olha, não reage. Sónia Savira volta-se para o público, toda sorridente). E agora vamos ouvir o outro lado da estória.
(Dirige-se ao condutor ébrio) O senhor aí!... Sim o senhor, queira por favor contar-nos o que aconteceu, mas antes diga-nos como se chama.”

CONDUTOR EMBRIAGADO
(Surpreendido, como que despertando) “Meu nome?... auá, como é mesmo antão meu nome?... (quase caindo) a mana quer saber como foi?... Ai tia, me jonjaram, me perseguiram.
(Com voz menos pastosa) Olha prima, ia só aqui na minha mãozinha (indica o lado esquerdo da estrada), juro mana, a garrafa do kapuca até estava vazia, quando me apareceu não sei donde esses dois carros mesmo que a prima está a ver embora aí! (Triste) Ai mãezinha, nem te conto, isso é só mesmo azar na minha vida. Veja então cunhada, dois carros me baterem ao mesmo tempo!...”

SÓNIA SÁVIRA
(Olha para o carro do condutor sóbrio) “Olhe ali o sangue da sua noiva a escorrer, meus Deus até parece um rio. (Volta-se rápida para o outro, surpresa) Dois carros que bateram contra si, disse? Eu só vejo um!...”

CONDUTOR EMBRIAGADO
(Aparvalhado e surpreso) “Ai mana, só está a ver um?...Deixa antão porque vucê estás com prubremas das vistas...” (saem os dois condutores).

SÓNIA SAVIRA
(Risonha) “Mais uma cena desta nossa Luanda!
Aproveitamos para chamar a atenção dos senhores motoristas... beber causa acidentes. Não beba se conduz, mesmo se esta nossa Caixa de Emburrecimento Colectivo faz-lhe ver os prazeres do vinho a toda a hora.
(Entram três jovens latagões, todos arranhados e desalinhavados. Colocam-se, em linha, de lado. Sónia Savira desajeitadamente arranja as suas chuchas ,num largo sorriso). E agora a nossa equipe de reportagens leva-nos até ao Palanca onde um grupo de terríveis meliantes conhecido pelo nome de Queen Girls, violou, guitarrou e pianou estes pobres rapazes ontem à noite (Repete o gesto de arranjo das chuchas, sorri para os rapazes e suspira profundamente).
Pois é, foram violados um a um, imaginem o terror que terão sentido. O que os nossos telespectadores talvez não saibam, é que este grupo de marginais, o notório Queen Girls, é formado por uma única jovem, lutadora de luta livre e aliás muito conhecida no bairro, e que dá pelo nome de Kiki Langalanga Ninfô. Mas ouçamos os infelizes rapazes!...”

PRIMEIRO RAPAZ
“Olhe, foi mesmo essa Kiki Langalanga Ninfô, nós já lhe conhecíamos de nome e de fama, mas nunca tivéramos acreditado. Aí no bairro passa o mambo que ela já fazia a mesma coisa lá em Kinshasa.
(Ao evocar o acontecimento começa a chorar) Nós vínhamos das nossas namoradas que estivéramos a dançar com elas, quando ali naquela zona mais escura onde paráramos para mijar, fôramos assustados com este acontecimento então! (acaba por controlar o choro).

SEGUNDO RAPAZ
(Mais jingão e entusiasta) “Olha minha, assim derepentemente nos sai na frente uma pessoa, ué, até pensámos que era um kifumbe, só depois é que vimos que era uma mulher. Não vais acreditar, minha, tinha uma pistola na mão e nos manda então tirar as calças.
(Imita) Ô tirras us carrrças u je te arrebantarr les couilles, gritou ela para mim. Com a vida tão cara, pensámos que era uma mãe desesperada, toda lixada, marido não ganha, enfim, julgávamos que era uma mãe que necessitava roupa para os seus filhos, toca então já de nos despir, pronto, paciência, ficávamos assim mas ajudávamos uma mãe em necessidade. Quem bem faz, bem recebe.

TERCEIRO RAPAZ
(Mais à vontade, apontando) “Ele foi o primeiro, ela lhe agarrou e lhe violou. Nós só ali a vermos (meneia as ancas, no gesto esclarecedor), ela só dizia -TOMA...TOMA...TOMA...- (os outros fazem o mesmo, com ritmo, a cada TOMA), depois, ainda queria mais, nos mandou embora deitarmos todos de costas (mímica o que narra) e até parecia marimba. Cada um foi violado e estamos bem zangados, por isso viemos denunciar aqui, porque nem um polícia apareceu, é sempre assim. Então com medo ficámos só calados o tempo todo e depois ela fugiu e disse um dia volta mais...”

SÓNIA SÁVIRA
“Aproveitamos este triste episódio para chamar mais uma vez a atenção da nossa polícia. Alô senhor comandante provincial da polícia, esta cidade está cada vez mais cheia de bandidos. Todos nós somos roubados, assaltados e agora, veja-se, violados!... Certamente que a si não lhe acontecerá o horror que estes jovens sofreram, rapazes inocentes a caminho de suas casas após terem visitado as suas namoradas. Hoje foram eles, amanhã poderá ser um velho. Se fosse consigo, estou certa que baixaria o cacete nessa tal de Kiki Langalanga Ninfô, mas como não é, que se lixe. Assim, cumpra com o seu dever, pois com a falta de homem que há por aí a concorrência será enorme e desleal.
(Saem os rapazes e ela suspira alto ao vê-los partir). E por hoje é tudo no “Raios te Partam Luanda”. Esta vossa amiga Sónia Savira, deseja-vos um caté mungu’ué...” (levanta-se e sai).

A sala torna-se repentinamente escura e no écran aparece projectado -Corte de Energia-. Quando a mesma for restaurada, estará à mesa da locução o locutor Honesto Jamorreu.

HONESTO JAMORREU
(Fala com grandes meneios de cabeça, parece que está a rematar uma bola com a mesma, etc.) “Caros telespectadores tivemos que interromper a nossa emissão por uns momentos devido aos habituais cortes de energia, pelo que pedimos as nossas sinceras desculpas (falha de novo a energia e tudo se repete).
Caros telespectadores, em nome da Edel, Empresa de Electricidade Liquidada, mais uma vez as nossas sinceras desculpas. Como devem ter seguido atentamente, acabamos de apresentar o conhecido programa de Sónia Savira, “Raios te Partam Luanda”, um programa de factos e acontecimentos que dignificam a nossa urbe.
Porem eu, Honesto Jamorreu, este vosso mais humilde locutor, também conhecido em certos círculos como a pérola da simpatia, a inteligência do tremoço, o nó fofo da gravata, (pausa onde, vaidoso, analisa o efeito das suas palavras) irá hoje sublimar-vos, proporcionar-vos a masturbação intelectual das vossas vidas (pausa, sorridente e meneando a cabeça várias vezes, para ver o efeito das suas palavras novamente).
Vou conceder-vos a oportunidade única... impar... de testemunhardes o acontecimento do ano, mesmo do século... nem o Bin Laden terá tido tanto sucesso (enfático) o acontecimento que jamais aparecerá nessa merda de programa “Raios te Partam Luanda” ou qualquer outro programeco, televisivo ou político.
(Como um anunciador de circo) Minhas senhooooooras, meus senhoooores, em directo para os vossos laaares, ooooo maiooooor espectáculoooooo doooooo mundoooo!... (Cresce ainda mais de voz) AQUI CONVOSCO O SENSACIONAL, O MELHOR, THE SUPER BEST, HONESTO JAMORREU E A SUA SUPERPRODUÇÃO -TUDO A PARVOÍCE LEVOU-!” (Saca uma pistola e dá um tiro na cabeça, caindo para trás. O público delira, grita, bate palmas e pede bis).

Atrapalhadíssima, todavia sempre sorridente, entra Sónia Savira que, em enorme felicidade por poder apresentar ao vivo a cena na CEC, faz um espectáculo de primeira.

SÓNIA SAVIRA
“É HORRÍVEL, É HORRÍVEL.... Minhas senhoras e meus senhores, QUE MARAVILHA, QUE SENTIDO DE PROFISSIONALISMO, QUE SHOW, SÓ MESMO O HONESTO JAMORREU!... OH, QUE HOMEM!...
(Ganha compostura. Desajeitadamente arranja as chuchas) Caros telespectadores, por razões imprevistas e alheias à nossa vontade, vemo-nos forçados a interromper esta emissão. Boa noite!” (Sai precipitadamente)

Alguns segundos depois, entram cinco pessoas em fila e dobradas uma sobre a outra completamente cobertas por um pano preto. Esta forma tem duas enormes cabeças, uma à frente a outra atrás. Dá uma volta ou duas pela cena, ocasionalmente balindo como carneiros, e sai. As luzes apagam-se e, como se de muito longe, ouve-se uma sirene da polícia.





BAIXA A CORTINA



FIM

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