sexta-feira, 26 de junho de 2009

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


A FESTA DA ILHA

Desafio abertamente qualquer um a contradizer-me, a desmentir-me que, quando a kianda era alimentada com o cartão de abastecimento do Ministério do Comércio Interno, a festa da ilha não era muito melhor, muito mais viva, alegre e participativa. E olhem, até nem chovia para estragar tudo, precisamente no momento exacto em que as kalundús, em seus garridos trajes vermelhos, desciam ao bordo do mar iniciando a cerimónia. Foi um Deus que me acuda com todos os presentes a bazar, porque molhar-se no mar é uma coisa, é digno e estimulante, ser molhado à toa e de sapatos, é outra.
Será que as divindades dos ares (que nome terão, aviandas?) ficaram enciumadas porque para elas não se vê sequer a TAAG ir pôr toalha rendada e farta nas nuvens, e toca de mandar água farta cá para baixo?
Esta festa, como a passada, andou fraquinha. Bem sei, os tempos estão difíceis. Com uma chapa de zinco a cinco milhões, não há barraca que se aguente montar. Minha amiga Antónia, que mantém barraca de comida nos trapas lamentava-se, amargamente arrependida, ter solicitado autorização para colocar uma filial à berma da estrada, para estes três dias.
“Ai vizinho, a grade está quase a quatro milhões, o frango a dois e meio, agora ainda com a chuva as massas não aparecem...”
Coisas da inflação e da kianda!
Porém o melhor da festa para mim, foi a parte explicitamente cultural e que não teve nada a ver com a Organização. Fui arrancado do noticiário, aí por volta das 20.45, por um alarido enorme na rua. Para meu espanto, cliticlop, cliticlop, cliticlop, passa diante da casa, em furiosa cavalgada, um boi nativo.
“As pacaças do parque fugiram oh meu Deus!”, foi logo o meu pensamento, só para recordar que as ditas cujas devem hoje estar a falar Afrikaans. Uns dez minutos depois, cliticlop, cliticlop, cliticlop, o replay no sentido inverso
Eis quando da turba que já pensava ter-lhe saído o totoloto, um mais afoito ou cuja fome era mais acentuada, no melhor estilo de um Prudhomme que não actuasse no Benfica de Lisboa, mas sim nos Forcados de Santarém, em voo olímpico, consegue agarrar-se ao rabo do boi e lá ele arrastado, esfacelando-se todo no asfalto. Mas como a fome miseris est, ou ainda que, por um apurado instinto empresarial, não largou e o boi foi derrubado.
O que fazer a seguir? A turba quer o seu quinhão, sobretudo já corria a boca livre que os bois estavam a ser descarregados na floresta e iam para o Frescangol.
“Traz catana! Quem tem catana?”, gritava o nosso Prudhomme forcado.
E a catana que não saía!...
Finalmente, o meu vizinho Delfim produziu um machado e a besta foi abatida, sem qualquer compunção, ali mesmo no meio da estrada, os condutores tentando adivinhar se tudo aquilo seria para a kianda. Antigamente só se punha churrasco, vinhinhos bons porque pelo resto a divindade era vegetariana. Mas isso era antigamente, hoje a kianda come muito, só que ninguém é que não lhe dá.
O boi abatido, sem dó nem piedade como referi, há que fazer a repartição, a divisão. Nesse momento até estive quase a sugerir que se arrastasse o animal para o meu quintal. Na repartição foi onde o nosso Prudhomme-forcado quis destorcer o rabo, mas não o deixaram.
“Quem lhe apanhou fui eu!...”, disse o voador esfolado.
“Mas nójú é que ajudámo!...”, replicaram logo vários empresários nacionais.
“O machado é meu!...”, lembrou vizinho Delfim.
“Eu só quero as miudezas para fazer jinguinga!...”, procurava a vizinha Mabunda.
“Quem lhi viu é su eu!...”, ouviu-se, de um miúdo atrevido.
Resumindo, estava quase a sair tiro, sai sempre e sobretudo porque ninguém quer, quando miraculosamente apareceu a amiga antiga, a outrora sargento Beti, hoje já com alta e devida patente, a pôr ordem naquilo tudo.
À distância, fez-se o velório dos bifes e da jinguinga, bem guardados por quatro polícias.

14/11/94


SOGRAS

Feliz foi Adão, que nunca teve sogra.
Por esta máxima, poder-se-á avaliar quão enquistada e universal, é a cínica apreciação das sogras, mesmo nestes tempos modernos que até nos permitem a sua aquisição na Internet.
No cenário clássico, a mamã do menino querido, ao ser trocada por outra mulher metamorfoseia-se no terror dos sete mares, que toda a recém casada espera nunca conhecer . Não é à toa que ele, marido, afirma que a única sogra boa é a da mulher dele. Não há canto ou assunto do lar, em que não se imiscui directamente, ou através daqueles subtis apartes para ouvidos com endereço certo e predeterminado. Sogra que se preze, tem que seguir essas regras imemoriais, nem que seja pelo facto de ser esposa e mãe com currículo e antiguidade no posto. Ao dizer isto, só posso ser levado a notar com sincero espanto, o gesto que considero surrealista por variados motivos, de muito boa gente aqui na terra, deitar abaixo todas essas teses anti-sogras, ao confirmar que de facto sogra é coisa boa, pois chegam a ter três ou quatro ao mesmo tempo.
Indo ao cerne da questão, quero-vos falar da Lúcia e do Miguel, um casal amigo com o qual privo de perto, o que me permitiu seguir os altos e baixos do seu relacionamento ab início.
Para o Miguel, na fase do namoro, a futura sogra até lhe parecia bem simpática, por certo, fruto do empenhamento que almejava uma conquista irremediável, capaz de derrubar toda e qualquer possível barreira protectora. Presenteava a senhora com caixas de chocolate, flores ocasionais e, sobretudo, já que ela gostava tanto de andar de carro, com longos passeios. Foi ao cúmulo de a ensinar a conduzir. O Miguel sentia-se feliz com as novas mulheres da sua vida, a futura esposa e sua mãe.
Logo após o casamento, passada a lua-de-mel, a sogra começou a aparecer com frequência, sobretudo em visitas relâmpago bem similares às da polícia económica, até porque morava na mesma rua. Ao fim do primeiro ano de casados, o Miguel começou por fazer sentir à Lúcia que, talvez, fosse aconselhável a sua mãe aparecer um pouco menos, todavia, com o nascimento da criança, as coisas não só não foram por esse caminho como pioraram, porque a Lúcia trabalhava, e ao fim dos noventa dias da licença de parto, teve que regressar ao emprego. A avó impôs-se, assim, como guardiã da criança, gesto aceitável de bom grado, não fosse a mania de prolongar a estadia para alem do que poderia ser considerado horas normais de expediente caseiro.
A situação prevaleceu durante uns dois anos, com o casamento deteriorando paulatinamente sem que qualquer deles tivesse a capacidade de colocar um ponto final na questão, ou seja, pôr a santa senhora fora de casa, mesmo a custos de lhe magoarem a sensibilidade.
Quis o destino que este caso fosse resolvido de uma maneira trágica, mas que, tempos após, levou a situação no lar a recompor-se e hoje a Lúcia e o Miguel vivem felizes.
Certamente que vão querer saber da tragédia, já que a mencionei.
A mãe da Lúcia costumava levar a criança a passear todas as tardes, no novo carro do genro, muito a seu contragosto. Agarrava no neto e dava longas voltas, sobretudo até Viana. Por volta das cinco da tarde, chegava a casa e aguardava o regresso do casal, insistindo em que deveria ficar para preparar o jantar, como sempre. Uma tarde, em que por acaso não levara o neto, teve um grave acidente no qual veio a perder a vida. Quando vieram informar a desgraça, já tempos decorridos da hora habitual da senhora estar em casa, Lúcia caiu desmaiada nos braços do marido que ora desatava a rir ora se punha a dizer “Ai meu Deus, e agora?”.
O relacionamento do casal começou a melhorar quando, ano e meio mais tarde, o Miguel teve a coragem de falar ao padre, mais em jeito de desabafo do que confissão, sobre a angústia terrível que o consumia desde a morte da sogra. Sofria um persistente complexo de culpa, porque o seu riso e dúvidas, tinham como origem a ambivalência de sentimentos que então experimentara. Culpava-se por se ter sentido feliz ao se ver livre da sogra, enquanto lamentava a destruição do sua viatura novinha, não sabendo verdadeiramente como, no momento, aquilatar ou ordenar as emoções.
De facto, feliz foi Adão, por nunca ter tido a necessidade de se queixar da mãe da mulher.

26/06/05

A BRIGA

Casados há pouco mais de um ano, tiveram a primeira briga há dias.
Não foi amuo, não. Foi mesmo briga e da séria, que só não deu reunião de família porque ela, a Rosa, a tinha toda no Kunene. E família grande, diga-se. O mais baixo dos irmãos kwanyama tinha um metro e noventa de altura e quase outros tantos de largura.
Ainda bem para o Celestino, agora banido para o sofá da sala de visitas por duas semanas.
Duas semanas?...
É que a Rosa tinha o espírito de Mandume, forte e guerreiro, e não pactuava com ninguém que ofendesse a sua fé e religiosidade.
Por questões da fé é que o marido foi banido para o sofá da sala de visitas?
Sim! E se olharmos para a questão sob o ponto de vista da Rosa, teremos que conceder que ela teve carradas de razão. Sobretudo quando se entender que o Celestino, mais ou menos ateu, se vira forçado a casar em cerimónia religiosa pela Igreja Católica quando a barriga da Rosa começou a crescer. A questão do crescimento da barriga não foi assim tão problemática, que necessitasse de negociações aturadas, estavam de facto apaixonados um pelo outro e queriam vive juntos, todavia a Rosa procedia de uma família antiga de gente muito religiosa, que já produzira três padres e dois cónegos ao longos dos anos. Casaram-se, pois, pela Igreja, com todo o cerimonial que uma ilustra família podia almejar para a primeira filha casadoira.
O Celestino, mesmo o nome favorecendo, teve dificuldades enormes para mastigar o pouco do catecismo que teve que aprender para o efeito, tendo passado ainda pela comunhão e pelo crisma. Jurou que um dia haveria de se vingar, não fosse ele também filho de Deus.
Enquanto viveram no Sul, frequentou assiduamente a Igreja, ia todos os domingos com a esposa e a família à missa. Mas não conseguiram que comungasse. Após várias tentativas, quando um bom domingo o viram mastigar a hóstia com tanto rancor que até fazia caretas, com metade dos comungantes a olharem estupefactos, foi imediatamente dispensado e liberado pela família, envergonhada.
Vitória que festejou secretamente, embora sol de pouca dura, pois teve que continuar a os acompanhar aos domingos e feriados religiosos.
Reagindo, aprendeu a dissimular dentro do hinário os livros de bolso detectivescos que tanto gostava, a Rosa fingindo que não via, porem não desarmava. A cada momento, lá o cutucava para se levantar, sentar ou ajoelhar. Haveria de transformar aquele coração fechado para a fé.
Quando vieram viver para Luanda, foi o grito da libertação do cativeiro. Com a família distante, foi a Rosa que teve que começar a aquiescer e assim, aos poucos, o lá foi perdendo como companheiro de missas e afins. Não pensem que o amor e relacionamento deles estiolara, nada disso, continuaram solidamente juntos, só que as missas dominicais foram substituídas pelo televisor ou saídas para um curto passeio, após o qual apanhava a esposa na igreja.
Mas como foi então parar exilado para o sofá da sala de visitas?
É que não soube medir a fé e, sobretudo a religiosidade da mulher, talvez por falta de um religiómetro ou por ter-se distraído com a liberdade adquirida.
E ainda por cima, foi a um domingo.
Já deitados, o Celestino deu para contar uma anedota à mulher, sem medir as consequências.
- Ó Rosa, queres ouvir esta?
- O que é, amor?
- Ontem morreram três velhinhas, sabes?
- Três velhinhas, todas no mesmo dia? Onde?
- É verdade. E foram as três para o céu porque tinham sido muito beatas.
- Mas o que é isso?!...
O Celestino, se estivesse atento, teria logo notado a inflexão vocal da esposa e ficado por aí. Mas não, aventurou-se um pouco mais ainda. Só um pouco mais, com aquele espírito dos aventureiros ou dos audazes.
- É como te digo... A primeira, chegada lá, pediu a São Pedro que lhe permitisse ser outra pessoa.
- Celestino, sabes muito bem querido que não gosto que se brinque com assuntos sérios.
- ?!...
- Ouviste, querido?...
- Ouvi, meu amor. Mas deixa que acabe. Ser outra pessoa, perguntou S. Pedro? Sim, disse ela. E que pessoa deseja ser? A Madona.
Neste ponto a Rosa saltou da cama e olhou para ele em sobressalto, estaria doente, paludismo cerebral?
- O quêêêê?!....
- Pois é como te digo, filha. A Madona, e foi-lhe concedida a graça. A segunda pediu para ser a Patrícia Faria.
- A Patrícia Faria? Mas tu estás bem?
Antevendo o golpe de misericórdia, pois por esta altura já estamos todos a ver que o Celestino escolhera a ocasião para se vingar conforme se prometera há anos, rematou, bem humorado:
- A terceira disse que queria ser a Pipalina do Saara.
Apanhada de surpresa, nunca ouvira falar de tal celebridade, a Rosa conseguiu reganhar alguma compostura para indagar:
- A Pipalina du Saara?...
- Olha filha, foi o mesmo que o S. Pedro lhe perguntou. Assim, a velhinha mostrou-lhe um jornal que trazia debaixo do braço, cuja parangona dizia “Pipeline do Saara é montado em quinze dias, por trezentos homens”.
Para terminar este assunto, baixemos uma pudica cortina sobre a cena que se seguiu logo após, e ofereçamos a nossa simpatia àquele incompreendido que ronca feliz no sofá da sua sala de visitas. Ainda lhe faltam mais onze dias. Talvez!...

22/08/04


O PALÁCIO D. ANA JOAQUINA

Torna-se extremamente difícil não falar do Palácio D. Ana Joaquina, sobretudo quando a ignominia do feito nos dilacera a alma ao mais profundo do sentir. Quiçá por já nada se poder fazer, a não ser não domar a revolta que a abjecção do gesto gerou em muitos de nós que, sem desejar ser qualquer tipo de farol alumiando caminhos, se sentem mutilados, diminuídos.
Os mentores dessa castração secular, deveriam ter julgado que um povo sem História é presa fácil para qualquer subjugação, seja espiritual, intelectual e sobretudo moral. Foi precisamente graças a essa amoralidade, crime maior que a imoralidade já que no mínimo isso significaria o reverso da existência de moralidade, que se destruiu quase trezentos anos da nossa História.
E não deixa de ser irónico, sem qualquer culpa para ela, penso, que foi justamente uma empresa do país que exportou forçosamente milhões de angolanos, agrilhoados, pelo mundo fora em naus dantescas, que usou o camartelo para irradicar a Memória duma das páginas mais trágicas da Humanidade, a escravatura. Memória essa que deveria perdurar a todo o sempre, para que a Consciência não soçobre no vasto mar da irreflexão onde, alguns, não se guiam pelos ventos das aspirações de uma conduta cívica exemplar que seus postos exigem, mas sim pelos lodaçais e pântanos dos seus interesses mais imediatos.
Não há justificação para o acto, digam o que disserem.
A realidade são os escombros antigos a entulhar a baía de Luanda, na Ilha do Cabo, onde, por ironia do destino, a mesma água que transpôs os suores e medos ancestrais dos involuntários edificadores de novos mundos, banha agora sua reminiscência impregnada nas pedras amareladas centenárias que ruíram. Como se só por não vermos o céu nublado, pretendamos que as estrelas não existem.
Com tristeza recordo que, não há muito, uma larga franja da sociedade luandense escandalizou-se porque uma estátua ofendia o seu moral, ignorando a força mítica de um Chibinga Ilunga, entre muitos dos símbolos das nossas tradições milenares, sejam de fertilidade feminina ou de procriação masculina. São estas perdas da Memória colectiva que levam a que certos, feitos Seus donos, ajam da maneira que agiram porque, vivendo num mundo que lhes parece particular, passam a confundir civilização com tecnologia, pela possibilidade de, num aso de prestidigitação canhestra, criar uma réplica da Alma.
Só nos resta esperar que jamais se repita o crime nem tudo se perca para as gerações vindouras.

05/12/99

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