sexta-feira, 26 de junho de 2009

"DESENCONTROS" IN JINDUNGUICES


DESENCONTROS

Filipina Maria Mendes de la Cuenca y Fraga era uma jovem mulher de vinte e seis anos, mestiça, descendência paterna de um aristocrata espanhol deportado para a América Latina por problemas com a coroa e que acabou, Deus sabe como e porquê, os dias em Angola.
Os vinte e oito rebentos africanos deixados com três mulheres negras, levam-nos a deduzir a natureza dos pecadilhos que forçaram sua majestade a correr com o fidalgo para as intempéries das colónias. Nada consta se no curto espaço de tempo que fez na América, teve a oportunidade de pôr à prova a sua prolixidade.
Entre os descendentes angolanos do aristocrata castelhano, três foram de notoriedade merecedora de registo.
Dois bisnetos, o Malaquias e o Francisco, ganharam fama não só por se revelarem a mais eficaz parelha de pumbeiros a ter enriquecido com o trafego de escravos, como por apenas então aprenderem a usar calçado dada a frequência de lugares e pessoas que o dinheiro comprara. A sua não menos larga progénie masculina deu pronto sumiço ao vasto património e fortuna amealhada pelos irmãos, em rixas, putas e vinho verde nas obscuras tascas das fedorentas vielas das metrópoles dos reinos Ngola e Benguela.
Na virada do século XX, notabilizou-se um Hernando de la Cuenca “Tira Bucho” y Fraga, então degredado para o sul da colónia pelo governo de Luanda, onde se tornou funante, e, mais tarde, famoso soldado de cavalaria, por sua audácia nas guerras contra os Kuanyama, a serviço do velho general Pereira de Eça. Combateu na batalha do Môngua as forças de Mandume, rezando o folclore local que teriam até sido amigos nos seus tempos de funante. Morreu pouco tempo após a batalha, putrefacto de gangrena, causada por diversos ferimentos não cuidados, em ambas as pernas. Quiseram-lhas amputar, todavia não consentiu; um de la Cuenca y Fraga sabia morrer, anunciou ao médico.
Daí aos dias de hoje, o nome da família caiu no anonimato e das glórias passadas dos de la Cuenca y Fraga nem os que carregam o ilustre apelido as sabem, em abono da verdade, melhor esquecidas que relembradas, já que será lícito aventar que os buchos do funante Fraga cavaleiro não seriam de bois ou carneiros.
Filipina Maria é casada com Evaristo Mateus, funcionária num dos ministérios na capital, directora de gabinete do excelentíssimo senhor ministro. Para além disso, a ilustre senhora herdou a capacidade de ter visões e falar idiomas estranhos e expressar-se em vozes que não suas e de pessoas já idas. Mas disso pouca gente sabe.
Evaristo Mateus, comerciante mais ou menos abastado, dependendo da frequência das viagens às zonas diamantíferas da Lunda,, casou-se há seis anos com Filipina Maria, com quem tem três filhos.
Faz o que quer e ainda com mais facilidade devido ao dinheiro que possui, mas como nunca arranjou uma segunda mulher, Filipina finge que não vê e por vezes até fica grata quando acomoda uma amante, deixando-a assim em paz na alcova, já que não era muito amiga dessas coisas.
A sua exigência, após o nascimento do terceiro filho, foi a de que ele utilizasse preservativos quando fizessem amor. A princípio, impor a decisão foi difícil, Evaristo não queria aceitar, mas após um prolongado boicote, rendeu-se aos desejos da mulher, com quem se entendia e respeitava.
Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto e dar com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito de a deitar, tendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa.
“Se te aproximas de novo, arranco-te o bucho!”
Estarrecido, Evaristo acreditou ser parte de um pesadelo e mordeu o lábio inferior tão fortemente que sangrou.
“Filipina, o que tens?”, conseguiu balbuciar, quase inaudível.
“Filipina?... sou Hernando de la Cuenca y Fraga. “
Não fosse a seriedade da situação, teria largado uma gargalhada já que essa fora a sua primeira reacção. Notando a camisa salpicada do sangue que escorria do lábio ferido, estremeceu ao ouviu a sua própria voz.
“Parente de minha mulher?”
Filipina, os olhos revirados, olhava-o como que através dos móveis e das paredes.
“Sim, o que morreu lutando contra o Mandume de que tanto falam.”
Filipina ergue-se da cama, avantajada, e deu dois passos em sua direcção, que mais pareciam os de um militar.
“Sabes o que mais?”, perguntou-lhe, erguendo-o pelos colarinhos. “Somos amigos nesta escuridão em que vagueamos...”, e deixou-o cair novamente, regressando à cama.
Evaristo esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfémia ouvir, não as palavras proferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.
“E o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.
“A tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”
“Minha mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.
“Sim, tua mulher!”
“Meus Deus, que pesadelo!..”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”, disse Hernando.
Evaristo ganhou compostura e ergue-se, de um pulo. Assustada, a esposa entrou em convulsões violentas, gemendo sons incompreensíveis que mais pareciam mistura de gritos de guerra kuanyama ao revidar violenta carga de cavalaria. Evaristo, aterrorizado, retirou um alfinete da caixinha de costura em cima da cómoda e começou, com ligeiras palmadinhas a picotar a cabeça da mulher, como vira nos xinguilamentos.
“Acalma-te Filipina, acalma-te... ai meus Deus...”
Quando, por fim, notou a esposa inerte nos seus braços, deixou-a cair suavemente na cama, acariciou-lhe a testa. Deitou-se a seu lado, sentindo-se em estado de choque.
“Combater em defesa da pátria? Será que ainda não chegaram lá notícias da independência?!...”, disse em voz alta, como que despertando de um sonho.
Esta foi a primeira experiência de Evaristo com os achaques da esposa e lamentável não se poder informar que desfecho teve o caso do Hernando “Tira Bucho” Fraga no que refere à sua camaradagem com o heróico Mandume, na escuridão em que ambos vagueavam, certamente o limbo. Ou Evaristo nunca relatou à esposa esta primeira experiência com o além, ou se o fez, Filipina, sua sensibilidade não permitindo, nunca transmitiu a preocupação do inditoso antepassado, os segredos da família devendo permanecer no seu foro e resguardados.
Hoje em dia, Evaristo Mateus é especialista em manifestações espíritas.
Não há ninguém nas Lundas que não tenha ouvido os mais bizarros relatos de casos ocorridos. Nas regiões do garimpo, o Hernando “Tira Bucho” de la Cuenca y Fraga é mais famoso que o rei Mandume, embora ambos andem de braço dado e em tu cás e tu lás, muito distintos dos anos e épocas de suas epopeias em que, com afoite, se guerreavam pelas terras, bois e cavalos.
Porque não relatava Evaristo Mateus estes acontecimentos em Luanda, onde só ele e a esposa conheciam a alma penada que os visitava ocasionalmente? Talvez porque impedido de atestar o que o descendente do aristocrata espanhol contava, já que o espírito de Mandume, sempre a lado de Hernando, nunca se manifestara através de Filipina. Havia pois apenas a etérea palavra do Tira Bucho que, quem sabe, até nunca teria pessoalmente conhecido o famoso rei guerreiro apesar de ter contra ele lutado.
No gabinete da directora de sua excelência o senhor ministro o telefone tocou. Filipina, que se encontrava ao computador, girou a cadeira e atendeu.
“És tu?”, soou a voz familiar do esposo.
“Sim, sou eu, mas estou atarefada ...”
“Era para te lembrar do almoço de amanhã.”
“Não me esqueci, mas vamos mesmo fazer jinguinga?...”
“Foi o que pediram. Olha, pelo sim pelo não, diz para prepararem igualmente outros pratos.”
“Está bem, vou já telefonar para casa e mandar a cozinheira, com o motorista, comprar o necessário. Não te esqueças dos vinhos. Tchau.”
“De acordo.”, respondeu, bem humorado.
Chegado o sábado, Filipina e Evaristo receberam na sua mansão no Miramar, com vista panorâmica para a baía de Luanda, os Gomes e os Afonsos, tendo-os deliciado com a fabulosa jinguinga, preparada com as melhores carnes de cabrito da sua quinta em Viana, regada generosamente com um Chateau Haut-Brisson, Saint-Émilion Gran Cru,1993, que comprava às caixas, em Brazaville.
“A jinguinga estava deliciosa, parabéns...”, disse madame Afonso, a grande apreciadora do prato.”
“Para lhe ser franca, nunca soube como a preparar.”, respondeu a anfitriã.
“Mas é bem fácil.”, insistiu.
Envergonhado, o marido, mais mundano e sensível, deu-lhe um suave toque por baixo da mesa. Esta, já farta dos sermões caseiros sobre educação e etiqueta, maneira do esposo lhe relembrar as origens, assim pensava, continuou deliberadamente, sem aguardar a opinião da dona da casa.
“Retire o sangue que guarda com vinagre para não coalhar e coloque à parte todas as miudezas...”, disse, olhando para ao marido.
Pairou sobre quase todos um desconforto. Os anfitriões a fingir delicado interesse, o casal Gomes a entreolhar-se em espanto, e o infeliz Afonso a simular que limpava a boca para esconder, com o guardanapo, o constrangimento.
“A tripa vira-se ao avesso, estica-se bem e lava-se em água corrente, enrola-se à volta dos bocados de rim, coração, fígado, bucho e demais miudezas tempera-se tudo, incluindo a carne, com alho, sal e limão”.
“Depois do almoço, vens falar dessas coisas, minha querida!...”, tentou mais uma vez, o marido.
“Deixe, é sempre bom saber...”, respondeu lesta a anfitriã, olhando intencionalmente para Afonso em modo tranquilizador.
“Também já estou no fim.”, disse, retribuindo, por baixo da mesa, a canelada ao marido. “Vai a lume, com tomate, cebola, alho picado e engrossa-se com o sangue guardado.”
“Bravo, bravo!...”, disse Filipina, jocosa
“E se passássemos lá para fora?...”, sugeriu Evaristo, para desanuviar o momento.
Após o café, os criados serviram os conhaques, aguardentes e licores, no pátio ao lado da piscina, onde uma música suave se fazia ouvir.
Momentos mais tarde, recostados nos amplos sofás baloiço, Evaristo notou a insistência com que a jovem senhora Gomes o mirava. Hesitou durante muito tempo, poderia ser o vinho e a comida em digestão que lhe pregavam a partida fazendo-o ver coisas onde não existiam, mas já ao entardecer, teve a certeza que madame Gomes se insinuava. Foi solicitar-lhe o prazer da dança.
O bolero escorria suave na economia de passos dos dois. A senhora Gomes cingia-o com suavidade, já bebera meia garrafa de licor, em tragos brandos, porém firmes.
“Há muito que não me divertia como hoje.” , ciciou ao ouvido de Evaristo.
“Que bom.” ripostou, um pouco encabulado, o sussurro apanhara-o desprevenido.
Os dois corpos atraíram-se e sentiram que acabavam de cruzar a linha do não regresso.
“Posso telefonar-lhe terça feira?”, perguntou Evaristo, decidido a não perder tempo.
“Terça, às quinze.”, respondeu lesta
A partir daí, a jovem senhora Gomes e Evaristo Mateus passaram a encontrar-se regularmente num apartamento que ele tinha na rua Rei Katyavala.
O romance durava há cerca de um ano. Cada vez que Filipina sugeria um almoço ou jantar para o casal Gomes, Evaristo encontrava sempre uma maneira de dissuadir a mulher. Temia expor seus sentimentos ou gestos, muito mais os da senhora Gomes.
“Porque não vamos passar uns tempos fora?”, sugeriu ela um dia.
“Engraçado, ia-te propor uma viagem.”
“Londres?”
“Pois Londres será, mas o teu marido?”
O marido? Atarefado homem de negócios, importador de mobílias e materiais de construção, perenemente em stress, pouca vontade exibia para as tarefas conjugais.
“Como ando a dizer há tanto tempo que desejo ir à Inglaterra, até já me comprou o bilhete. Nada estranhará. “
Viveram uma semana de idílio em Londres.
De regresso a Luanda, os encontros clandestinos continuaram por muito tempo todavia a rotina começou a instalar-se e Evaristo reclamou. Com receio de o perder, a jovem senhora Gomes aceitou o novo desafio, e acertos em sítios escuros, sobretudo no carro, renovaram a sublimidade do relacionamento.
Foi como se fosse uma segunda lua de mel.
Com a adrenalina em píncaros arriscados, gozaram os prazeres do perigo e do arrojo. Jamais se haviam desejado e amado com tanta ousadia e descaramento.
Num anoitecer de cacimbo, a pedido de Evaristo, foram ao fundo da Ilha, aconchegados às outras viaturas, quais aves arribadouras em reserva protegida.
No passeio do desenfado dos luandenses à Ilha, os faróis do carro que Filipina conduzia, com a sua amiga Afonso, bateram em cheio no do esposo, que sacolejava ao ritmo africano do amor.
“Aquele não é o carro do Evaristo?”, perguntou.
Sem esperar resposta, desligou as luzes e, numa correria louca, seguida pela amiga, abriu violentamente a porta de trás da viatura, que Evaristo se esquecera de trancar, acendendo-se a luz interior. Despidos e boquiabertos, o par não reagiu.
“Tu?!”, gritou Filipina Maria ao ver madame Gomes.
“Tu?!”, gritou a senhora Afonso ao ver madame Gomes.
“Fecha a porta, fecha a porta!”, implorou Evaristo.
Seria impossível descrever o que passou pela mente de Filipina durante os escassos segundos que a paralisaram, de boca aberta, em descrédito. Madame Afonso, de igual modo olhava para o marido da amiga.
Ouviu-se um grito terrível que mais parecia um roncar de leão enfurecido e Evaristo poisou, com medo, os olhos nos da esposa. Logo reconheceu o senho familiar quando Filipina entrava em transe. Sentiu-se insignificante, encolhido em cima da amante.
“Filho duma cabra! A traíres a minha parente?...”, Evaristo ouviu Hernando Fraga dizer.
“Que se passa?, gritaram as madames Gomes e Afonso assustadas, não reconhecendo a amiga.
Da saco que ainda levava a tiracolo, Filipina retirou a pequena faca de caça que sempre carregava para protecção, e avantajou-se sobre Evaristo.
“Despede-te da vida, vou-te tirar o bucho.”, disse Hernando fazendo jus ao nome
Aterrorizado, conseguiu abrir a porta do outro lado e, apenas de camisola, deitou a correr pela estrada, aos gritos de socorro, perseguido pela mulher e pelo espírito do ilustre antepassado, irmanados fisicamente na faca lugubremente zurzida no ar.

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