terça-feira, 23 de junho de 2009

ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS


TEATRO EM ANGOLA


Seria redutor falar do teatro em Angola sem antes fazer referência a toda uma série de experiências ocorridas (e produzidas) nesse espaço geográfico que é Angola e que, de algum modo, introduzem no país essa disciplina artística na acepção em que ela é hoje universalmente conhecida.
Estão em primeiro lugar as representações religiosas feitas pelos missionários cristãos (jesuítas, franciscanos, carmelitas descalços, capuchinhos italianos, etc) nas escolas que desde os primeiros tempos da colonização foram espalhando um pouco por todas as principais localidades angolanas.
Se excluirmos a expulsão temporária dos jesuítas em fins do século XVIII e a de outras congregações em meados so século XIX, essas ordens cristãs puderam proliferar-se e difundir tranquilamente a sua mensagem religiosa, a qual, como é sabido, se fazia com muita frequência através da dramatização e teatralização dos “textos sagrados”.
Na sua forma laica, só em meados do século XIX, concretamente nas duas décadas compreendidas entre 1845 e 1865, encontramos referências precisas sobre um teatro em Luanda, pretexto de diversão e convívio mundanos das “elites” coloniais da capital. A imprensa da época é pelo menos tão pródiga em analisar as virtudes ou defeitos dos actores ou das obras quanto a descrever a assistência aos espectáculos.
Vários nomes podem ser retidos nesta aventura do teatro em Angola em meados do século passado. O advogado Ernesto Marecos, Domingos José Pereira e, em lugar de destaque (numa curiosa antecipação do projecto Cena Lusófona) o Dr. Saturnino de Sousa Oliveira, cônsul do Brasil e considerado “grande benemérito” na época das epidemias. Supõe-se que dirigiu muitas das récitas do Teatro Providência e, posteriormente, da Sociedade Dramática, tomando ele próprio por vezes parte na representação.
Regista-se com curiosidade que todos os espectáculos da época eram interpretados exclusivamente por homens, devendo as senhoras, mesmo na assistência, ocuparem uma galeria a elas especialmente destinadas. A própria diferenciação social imposta pela dominação colonial excluía naturalmente das salas de teatro a presença da maioria da população autóctone.
Cerca de cem anos mais tarde - alterada já a conjuntura social, económica e política da colónia com o aumento da população colonizadora e a adopção de formas mais sofisticadas de exploração e de manipulação das grandes massas angolanas - a situação teatral mantinha-se na sua essência praticamente idêntica.
A nível do teatro institucional, localizado sobretudo no teatro Avenida (ainda hoje é a única sala de teatro minimamente funcional da cidade), permanecia o gosto pela alternância entre o “drama” e a “comédia”, embora não necessariamente associados numa mesma sessão, como no século anterior. A par de algumas tentativas isoladas que iam tentando lançar as raízes de um teatro de confecção local, o grosso das produções era constituído pelas “revistas musicais”, “melodramas” e “boulevards” importados da Metrópole.
Falar do teatro angolano propriamente dito também nos obriga a uma breve incursão pelo passado, em primeiro lugar para tentarmos apurar se alguma vez existiu um teatro angolano tradicional. Pessoalmente estou convencido que não, embora modernos investigadores, dentro e fora de África, tenham cada vez menos relutância em caracterizar como teatro certas manifestações artísticas dos povos africanos que envolvem numa expressão totalizante o gesto, a mímica, a dança, o ritmo e o ritual.
De facto, mesmo admitindo que existem de facto dramatizações teatrais nas grandes liturgias e manifestações rituais e mitológicas, do passado e do presente, tanto em Angola como na África em geral, essas formas de teatralização não podem, a rigor, ser caracterizadas como teatro.
Isto porque apesar da grande importância dada já à encenação, ao jogo e à representação, e apesar de todas as suas formas expressivas, miméticas e lúdicas cumprirem também uma função teatral, essas manifestações culturais não fazem ainda uma clara distinção entre o que é representação e o que é vivido litúrgico (como nas cerimónias de entronização ou de luto).
Basta atentar, por exemplo, para o que acontece entre os Mundombe, que habitam a região Ndombe Grande, a Sul da província angolana de Benguela. Entre eles é possível, durante uma cerimónia fúnebre, fazer-se a identificação do grau de parentesco com o morto apenas pela maneira como cada um chora ou manifesta o seu sofrimento.
Há, portanto, uma espécie de pauta formal prévia, do conhecimento e aceitação de todos, de acordo com a qual cada um expressa os seus sentimentos verdadeiros. Pode, pois, dizer-se que esta atitude implica uma cera teatralização (uma vez que há uma clara representação segundo um esquema pré-estabelecido), sem que haja propriamente teatro (porque o que está aqui em causa é a expressão de uma dor real).
Nem mesmo aquelas formas expressivas em que a teatralização prevalece sobre o litúrgico (as danças colectivas, os cultos de possessão, os ritos de passagem para uma classe cultural, etc) podem ainda ser definidas como teatro, em razão da sua (ainda) acentuada evocação do sagrado ou da sua função predominantemente mágico-religiosa.
O que podemos mais facilmente admitir é que efectivamente todas essa manifestações culturais e outras tradições africanas (as recitações poéticas, os mimos, as narrativas orais, as danças miméticas, as procissões de máscaras, as marionetas, etc.) são o fermento e o material de base a partir do qual se poderão atingir formas teatrais mais elaboradas e que respeitem as leis (em si bastante flexíveis) de estruturação cénica e de dramaturgia universalmente aceites.
Os primórdios de um teatro vamos começar por encontrá-los na literatura e em três experiências concretas ocorridas antes da Independência: a primeira nos bairros suburbanos de Luanda nos anos 50/60, a Segunda em bases guerrilheiras no Leste do país no início dos anos 70 e a terceira nas escolas da capital imediatamente antes da Independência (1975).
Antes de 1975, no entanto, o inventário superficial deste tipo de literatura inclui apenas mais alguns nomes, entre os quais se destacam António Van-Dúnem, Armando Coreia de Azevedo (A Taberna, Muii) e Domingos Van-Dúnem (Auto de Natal), entre outros cujas obras (nunca editadas em livro) dormitam em arquivos privados ou se perderam irremediavelmente.
É por essa razão em experiências teatrais concretas que temos de encontrar os elementos de caracterização do incipiente teatro angolano. Em primeiro lugar na actividade dos grupos Gexto (sigla do Grupo Experimental de Teatro) e Ngongo; nas dramatizações dos grupos carnavalescos Cidrália, Invejados, Fineza, Kabetula, Kazacuta e Kabocomeu, e também no “teatro dos pioneiros da guerrilha”.
O Grupo Gexto (registe-se mais esta antecipação do projecto Cena Lusófona) foi criado nos anos 50 à imagem do grupo brasileiro Teatro Experimental do Negro, de que Abdias do Nascimento é o líder e o jornal Quilombo o órgão divulgador e, entre os seus animadores, encontram-se os já citados António e Domingos Van-Dúnem e ainda Gabriel Leitão, tido como um humorista de “potencialidades ímpares”.
O Grupo Cultural Músico-Teatral Ngongo nasceu em Outubro de 1961 na Liga Nacional Africana (associação cultural que na época servia já para encobrir actividades nacionalistas) e a sua estreia ocorreu em Agosto de 1962 com a peça em três actos Muhongo-a-Kasula, adaptada de um conto extraído da obra Ecos da minha Terra de Oscar Ribas.
A principal característica deste grupo foi concentrar no seu seio um grande número de compositores, músicos, coreógrafos, actores, autores, poetas, declamadores, dançarinos, vocalistas e arranjadores, o que lhe permitiu explorar vias originais e desenvolver uma múltipla actividades nas áreas da música tradicional, da música popular urbana, do teatro, da dança, da poesia e da declamação.
De 1962 a 1966, ano em que virtualmente desaparece “por razões Conjunturais” (sic), o Ngongo realizou centenas de espectáculos diversificados, com uma sucessão regular de temporadas artísticas que chegavam a durar vários meses, tanto na capital como no resto do país e mesmo no exterior. Foi, por exemplo, considerado em Portugal o “melhor grupo de África” de 1965.
Alguns anos mais tarde, concretamente em 1972/73, e ao contrário do Ngongo, que sempre desenvolveu a sua actividade para um público urbano e suburbano, alguns militantes do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), tentavam, com fins pedagógicos, uma interessante experiência de teatro com crianças nas zonas rurais onde se desenrolava a sua acção guerrilheira, experiência essa que ficou conhecida como “teatro de pioneiros na guerilha”.
No teatro pós-independência, a primeira e necessária constatação que se impõe é a de que o teatro angolano feito depois da independência é irrelevante como fenómeno cultural e inexiste ainda enquanto realidade efectiva e estruturada, continuando a pertencer ao domínio da utopia a política cultural que eventualmente poderia ter sustentado a sua eclosão e desenvolvimento. Para o demonstrar basta talvez afirmar que não existe até hoje no país uma única companhia profissional, com sala própria e reportório regular.

José Mena Abrantes

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